Cismas, reformas e divisões na Igreja – III

Constantino e Niceia

Niceia, 325. Constantino, imperador romano (306-337), enviando cartas aos bispos da todas as nações possíveis, convocou o Primeiro Concílio de Niceia da Bitínia (atual İznik, na Turquia). Trata-se de uma reunião magna de bispos, ou titulares das dioceses da época. Este concílio, uma assembleia representando toda a Cristandade, foi a primeira tentativa de se obter um consenso na Igreja. Muitos eram já os teólogos e as escolas teológicas, como já vimos. Muitas eram as explicações para problemas que surgiam, muitas vezes sem resultados e criando ainda mais confusão e desvios doutrinais. Os grandes problemas assentavam na falta de clareza na explicação e compreensão da Trindade na unicidade de Deus.

Niceia teve como principais resultados o estabelecimento e definição da questão cristológica entre Jesus, Filho, e Deus, o Pai; a clarificação da Doutrina Trinitária, ou Trindade; a construção do Credo, dito “Niceno”; a fixação da data da Páscoa; e a promulgação da lei canónica. Podíamos assim começar pelos resultados. Mas interessará mais perceber porque se chegou a Niceia. Ao concílio, ao debate e à exigência de clarificação.

A unidade de Deus nunca foi posta em causa. Existiam longas disputas doutrinais, com uma elaboração teológica que no princípio do séc. IV era já complexa. Os concílios serão sempre a melhor forma de se resolver as questões. Embora com sucesso relativo. As maiores disputas centravam-se, no entanto, na identidade do Filho. Inúmeras heresias surgirão, como estamos a ver. A Igreja defenderá de forma acérrima a unidade de Deus e a concepção trinitária das pessoas divinas.

Niceia resolverá com a fórmula adoptada de que Deus é consubstancial, o que levou a facilmente reconhecer que o Espírito Santo procede do Pai através do Filho. A doutrina das três pessoas divinas era o objecto central da fé. Mas não era assim tão líquido…

 

De Árrio a Niceia

Na grandiosa e erudita Alexandria do Egipto, um presbítero chamado Árrio, ou Ário, pregava que se o filho de Deus fora crucificado, então sofrera. Assim, sendo Deus impassível e não podendo sofrer, era necessário, ensinava Árrio, distinguir entre o Pai transcendente, a primeira causa de toas as coisas, e o Filho, que derivava da Sua vontade. Na perspectiva da história da Salvação, o Filho de Deus pertencia pois a uma categoria inferior, segundo o presbítero alexandrino.

Estávamos em 323, quando estas “eloquências” arianas se manifestaram em público. Alvoroço, dúvida, debate apaixonado. E claro, um sínodo para resolver. Era o percurso normal à época para quando surgia uma questão teológica fracturante como esta. Era urgente clarificar e dirimir com autoridade um conflito doutrinal destes, com um debate que se acendeu de forma rápida e acutilante. Era imperativo acabar com a controvérsia. Ainda era apenas uma controvérsia. Mas como não se conseguiu convencer e trazer Árrio à ortodoxia, foi excomungado. A controvérsia passou a heresia. Ganhou força com a adesão de grandes intelectuais cristãos, como Eusébio de Cesareia e Eusébio de Nicomédia. Estava ateado o fogo. A adesão popular cresceu, a doutrina espalhou-se rapidamente no Oriente.

Constantino viu-se envolvido na questão, desgostoso, pois entendia que conflitos doutrinais enfraqueceriam o Império, instável e vulnerável, apesar da paz conseguida na vitória sobre o usurpador Licínio. Reuniu-se o concílio, como vimos, em Niceia. Mas não se restabeleceu a paz, pois as ambiguidades do termo “omousios” (isto é, “da mesma essência”, que em Latim se traduzia por “consubstancial”) criaram novas interpretações, novos debates.

 

Reacções a Niceia: Nestor…

Começam logo com os arianos, que não desarmaram. Sem contradizerem de forma explícita as definições de Niceia, tudo fizeram para esvaziar estas de sentido. Através de fórmulas doutrinais, que rapidamente enxameavam e se iam tornando aceites, chegando até ao imperador. Assim, os contornos políticos sobrepunham-se à questão religiosa, que vingava através daqueles. Os bispos eram muitas vezes obrigados a aceitar as imposições religiosas imperiais, que camuflavam fórmulas arianas. Atanásio, bispo de Antioquia, foi um dos que combateu o arianismo de forma vincada, lutando sempre pela aplicação dos decretos de Niceia. Todavia, acabou caluniado, deposto e exilado. Mas sempre a defender intransigentemente a ortodoxia, merecendo o apoio de Roma e de muitos mosteiros. O arianismo parecia triunfante, porém…

Impunha-se o cumprimento de Niceia. Ou completar este concílio. Ou seja, esclarecer de forma definitiva as relações entre as naturezas humana e divina de Cristo. Ou determinar como se combina o humano e o divino no Filho. Neste esforço de completar Niceia e afirmar a ortodoxia, surgiu porém mais uma tendência interpretativa. Nestor (ou Nestório), bispo de Constantinopla, ateou ainda mais a fogueira da discussão cristológica. Com efeito, Nestor afirmava que o Logos habitava no homem Jesus como num templo, pelo que Maria, por isso, deveria ser chamada de “Mãe de Cristo”, mas nunca “Mãe de Deus”. A “bomba” fora detonada…

Como em todas as controvérsias, surgem os “prós e os contras”, atiçam-se posições e trincheiras. Cirilo, bispo de Alexandria, foi um dos que se atirou implacavelmente a Nestor. Teodósio II, imperador convocou mesmo um concílio para Éfeso, em 431. Num clima de tensões e divisões, Maria foi reconhecida em Éfeso, como verdadeira Mãe de Deus, pois só havia um Cristo, Filho e Senhor. Outra das marcas que este concílio nos deixa é a das idiossincrasias latentes na Igreja, no Oriente principalmente. Isto era visível nas rivalidades existentes entre patriarcados, além de diferenças e distinções teológicas entre escolas, como as de Alexandria e Antioquia. Estas diferenças serão o gérmen de divisões e fracturas futuras, ainda hoje por sarar.

O debate era complexo, porque centrado num tema complicado: os nestorianos separavam as duas naturezas de Jesus, colocando em perigo a unidade do Salvador, enquanto que os seus adversários acentuavam a divindade de Cristo a um ponto que parecia sobrepor-se a Sua humanidade, absorvida na primeira.

A fragmentação teológica alastrava, acesa por debates, por intolerâncias, a unidade estava em perigo, fermentando heresias e seitas, divisões emergiam cada vez mais. Como é que a Igreja sobreviveu e pugnou perante estas divisões?

Vítor Teixeira 

Universidade Católica Portuguesa

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