O Neo-Pelagianismo – I
Em 22 de Fevereiro de 2018, o Papa Francisco aprovou a Carta “Placuit Deo” (“Aprouve a Deus”), da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, sendo publicada a mesma uns dias depois. Trata-se de um documento breve e conciso, claro e bem estruturado, fonte de ensinamentos fundamentais para a fé católica. Mas porque o recordamos hoje aqui? Porque aborda uma das “tentações” cristãs dos tempos de hoje, em articulação com a globalização e materialismo: o Neo-Pelagianismo.
Para se compreender melhor o que é o Neo-Pelagianismo, temos que conhecer a deriva teológica que o mesmo revisita, ou tentar rever e recuperar para os tempos de hoje: o Pelagianismo. Esta designação, condenada pelo Papa Inocêncio I (Papa entre 401 e 417), tem a sua origem em Pelágio (430-423), monge da Bretanha que afirmava não ser necessário o auxílio da Graça de Deus para realizarmos actos de bondade. A sua filosofia foi condenada por teólogos – como Santo Agostinho e São Jerónimo, por exemplo –, tendo sido considerada heresia pelo referido Papa Inocêncio I. Como conceito teológico, o Pelagianismo negava o pecado original, a corrupção da natureza humana, o servo arbítrio (ou arbítrio escravizado, cativo) e a necessidade da Graça Divina para a salvação. Apesar de condenado e solidamente refutado, não desapareceu de todo.
UMA CONJUGAÇÃO PERIGOSA
Hoje em dia, a idolatria ao mercantilismo, a exploração do homem pelo próprio homem, a corrida desenfreada pela extracção desmedida de recursos naturais e a degradação da nossa casa comum, a Terra e o Meio Ambiente, fazem renascer o Neo-Pelagianismo, ou pelo menos contribuem para a recuperação do conceito.
A referida Carta, assinada pelo Papa Francisco, dedica uma parte a manifestar que a Igreja é o lugar onde se encontra a salvação de Jesus, indo contra o “intimismo” neo-gnóstico, sublinhando a necessidade de uma adesão à Igreja não apenas de forma interior e invisível, mas também numa dimensão visível, onde se possa tocar e ajudar os mais fracos e os que sofrem, os pobres. A Igreja, nesta tomada de consciência que a Carta proclama, luta contra um dos flagelos da sociedade moderna, no que se está a transformar num erro de civilização: o “individualismo centrado no sujeito autónomo”, o qual tende a ver o “homem como um ser cuja realização depende unicamente da sua força”. O Neo-Pelagianismo, e como veremos o Neo-Gnosticismo, vão precisamente por aí, constituindo-se como duas formas polémicas de abordar o homem e o seu papel no mundo de hoje na perspectiva de um individualismo materialista e descaritativo.
O Neo-Pelagianismo é para o Papa Francisco, conforme se vê na referida Carta, como que uma tentação perigosa dentro da Igreja, tal como o é o Neo-Gnosticismo. A tentação neo-pelagiana incute no indivíduo uma confiança nas estruturas, nas organizações, nos melhores planeamentos, mas porque tudo é abstrato. O indivíduo, por isso, é levado muitas vezes a assumir um estilo de controlo, de dureza, de imposição de uma normatividade em tudo. O neo-pelagiano, senhor da norma, fica com uma maior segurança e sente-se superior, com uma orientação muito precisa, mas abstracta e vazia de espiritualidade e caridade. Nessa superioridade e força, estribadas na norma, encontram os neo-pelagianos a sua força, não a encontrando, todavia, na Graça, no Espírito. E é por ele que a Igreja se conduz até Cristo, refere o Papa, não apenas na tentação neo-pelagiana pejada de normas e mudanças de estruturas e sempre a conceber planos. Por isso, encaixa-se tão bem no imaterialismo do mundo actual, da globalização opressiva que não deixa muito espaço ao Homem e à espiritualidade, à Graça. E não é no recurso a soluções de conservadorismos e fundamentalismos, na reestruturação de normas e condutas que a Igreja avança, pois todas elas nem sequer significação cultural possuem. “A doutrina cristã não é um sistema fechado incapaz de gerar perguntas, dúvidas, interrogações, mas é viva, sabe inquietar, sabe animar. Tem um rosto não rígido, tem corpo que se move e se desenvolve, tem carne macia: a doutrina cristã chama-se Jesus Cristo”, refere o Papa na Carta “Placuit Deo”. A reforma da Igreja não passa pois pelo Pelagianismo, ou sequer pela sua revisão ou actualização neo-pelagiana. Porque se assim fosse, não havia lugar para o génio ou a criatividade, logo não haveria uma reforma activa e enxertada na mensagem de Cristo.
É essa a mediação salvífica da Igreja, do todo animado pelo Espírito. O individualismo neo-pelagiano, tal como o “desprezo” neo-gnóstico em relação ao todo, ao corpo da Igreja, descaracterizam a confissão de fé em Cristo, único Salvador universal, aponta a mesma Carta, além de negarem, ou contradizerem, “a economia sacramental, através da qual Deus quis salvar a pessoa humana”. A Igreja é o lugar da mediação e onde a salvação em Cristo é encontrada. Por isso, o Neo-Pelagianismo é também reducionista, pois esvazia o corpo universal da Igreja de Cristo e imbrica-se na capacidade individual, subjectiva, dos homens… Esta é outra característica desta tendência teológica moderna, a salvação através de forças individuais, sem a comunhão da Igreja.
Há na Igreja um ideal de missão e de diálogo, de universalidade e de proclamação da Boa Nova, ideais que fazem parte da matriz cristã. A salvação em Cristo é possível para qualquer um, como já referia São Paulo nas suas Cartas. Por isso a missão e o diálogo são importantes e fazem parte do todo, do colectivo, não são pois projectos individuais. Senão os Evangelhos perderiam a sua essência e objectivo. E matava-se a esperança que nos salva, recordando de novo São Paulo. “A salvação integral, da alma e do corpo, é o destino final ao qual Deus chama todos os homens”, remata por isso Francisco na Carta. Há uma só forma de acertar afinal, mas muitas formas de errar, dizia Aristóteles. Há muitas tentações, muitos caminhos, mas só um é o correcto.
O Neo-Pelagianismo tende a ser rigorista, confiado sempre no cumprimento estricto e severo da lei, das normas. É como se pode ver no panorama actual da Igreja, onde alguns sectores tendem para uma anomia pura (anomia é um estado de falta de objectivos e de regras, de perda de identidade, “provocado pelas intensas transformações ocorrentes no mundo social moderno”), para uma interpretação subjectivista, relativista, das normas – por exemplo, no que toca à Liturgia. Eis aí a configuração de uma tendência dentro do Neo-Pelagianismo, pois a essência do Pelagianismo é a recusa de toda a dependência da liberdade humana face a qualquer instância exterior. E não é só face à Graça Divina, também refuta a verdade natural e a verdade revelada por Deus, bem como a lei moral que se baseia nessas mesmas. O Neo-Pelagianismo anómico, Neo-Pelagianismo legalista, quantos são e onde estão afinal? Como se revelam?
Vítor Teixeira
Universidade Católica Portuguesa