CISMAS, REFORMAS E DIVISÕES NA IGREJA – CLXXXIV

CISMAS, REFORMAS E DIVISÕES NA IGREJA – CLXXXIV

O Pietismo – VIII

O Pietismo é uma reforma de uma reforma. Mas teve um impacto muito grande para lá dos círculos pietistas e do Luteranismo. Também o teve na literatura, na cultura, não apenas na fé e na espiritualidade. Muitos dos hinos oriundos dos círculos pietistas foram classificados como muito subjectivos, pessoais, até mesmo sentimentais, embora num estilo adaptado para uso congregacional, onde a música foi sempre deveras importante. Alguns dos compositores pietistas, como Johann Jakob Schütz, Johann Anastasius Freylinghausen, Johann Jakob Rambach, Carl Heinrich von Bogatzky, Ernst Gottlieb Woltersdorf, Philipp Friedrich Hiller e Nicholas Louis von Zinzendorf, conquistariam um lugar de destaque na composição dos hinários luteranos. Não apenas pela riqueza da poesia produzida mas também pelo estímulo que exerceu na poesia religiosa além do círculo pietista.

O Pietismo confere um destaque especial à preparação religiosa e à Bíblia. Spener tinha uma elevada estima pela preparação religiosa e moral do povo por meio da instrução religiosa, no que seguia Lutero nos seus catecismos. Esse apreço materializar-se-ia a nível estatal, como se viu na ordenação de 24 de Fevereiro de 1688 em que se estabeleceram exames catequéticos semanais para crianças e adultos em todo o País. Spener pode mesmo ter sido o inspirador do édito prussiano de 1692 que exigia a catequização dominical nas congregações rurais.

No fundo, Spener pretendia uma assimilação interna da verdade religiosa, em vez da mera comunicação de conhecimento. Os seus esforços para promover a piedade de forma prática na população estavam intimamente associados ao seu interesse na Confirmação, que se tornou uma parte integrante fundamental na Igreja Luterana, muito graças à influência do Pietismo.

A CONFIRMAÇÃO

Mas o que é, afinal, a Confirmação no Luteranismo? Trata-se de um Sacramento que confere força religiosa aos cristãos e completa o dom do Espírito Santo concedido no Baptismo. Pela Confirmação, os baptizados são recebidos em plena comunhão nas igrejas anglicana e luterana. Mas a Confirmação nas igrejas luteranas foi-se convertendo num rito eclesiástico geral solenizado e cerimonial, com especial deferência aos laços familiares e amigos. Esta dimensão social e clientelar tornou-se demasiado institucional e pouco espiritual, pelo que os teólogos naturalmente tentaram explicar a sua natureza e significado. Muitos viram-na como um complemento do Baptismo (Schleiermacher) e como um acto de recepção na Igreja confessional (Wegschneider, Bretschneider); outros consideraram-na como testemunho de maturidade no caso daqueles que foram baptizados quando crianças (Nitzsch, Dorner); muitos consideravam-na como uma forma de recepção na congregação de adultos, ou como meio de constituir uma congregação mais limitada que delega a direcção da vida à Igreja, mas também gozando do privilégio da Comunhão (J. C. C. von Hofmann); também foi vista como um consumação do estado de catecúmeno baptizado e como renovação do vínculo baptismal, do lado subjectivo; outras entendem-na como forma de ordenação de leigos e recepção na congregação (Zezshawitz); ou então como comunicação carismática do Espírito pela imposição das mãos (Vilmar). São pois várias as explicações, mas qualquer uma com objecções.

Depois, surgiria a teoria de que a Confirmação – na medida em que concede o direito de Comunhão – deverá ser adiada na idade, sujeita à objecção de que uma participação potencial na Eucaristia seria compatível com a recepção pelos fiéis e penitentes, como é pressuposto no caso dos batizados e de crianças educadas religiosamente. Portanto, considerava-se ser melhor conceder o direito à Comunhão às crianças batizadas instruídas, por Confirmação solene ou imposição de mãos perante a congregação reunida. Mais do que um ponto de discussão, revela-se uma vez mais a vitalidade teológica e abertura ao debate filosófico e doutrinário que o Pietismo trouxe ao Luteranismo e para além deste. Muito devido à fecundidade doutrinal que a energia de Spener potenciou, mas sobretudo graças à actividade educacional de Francke, que marcaria o cunho pedagógico e formativo do Pietismo.

Já aqui realçámos que uma das principais características do Pietismo era o facto de se declarar baseado exclusivamente na Bíblia. Tal pode parecer uma mera repetição das afirmações do Luteranismo, mas o Pietismo mostraria a sua independência da ortodoxia luterana tanto no seu propósito de retorno imutável à Bíblia como na sua forma de aplicação das verdades bíblicas. A Igreja Luterana estava presa, ao contrário do Pietismo, pelos credos nos quais resumia a sua compreensão da Bíblia e os quais considerava como legitimados pela própria autoridade das Escrituras. Ou seja, para os Luteranos a autoridade da Bíblia, enquanto base de verdade, estava subordinada a interpretações traduzidas em credos, portanto, de forma indirecta ou através de fórmulas (credos). Já a “restauração pietista” da autoridade da Bíblia foi, portanto, um retorno directo a um dos princípios cardeais da Reforma alemã. Ou seja, a interpretação é directa por parte do crente, sem credos ou fórmulas construídos teologicamente. Ao conferir ao cristão “renascido” (pietista) a plena capacidade e autonomia para o estudo independente da Bíblia, o Pietismo restaurou nos leigos um direito que tinham perdido no Luteranismo tradicional.

Francke teve aí uma acção fundamental, na formação dos fiéis para a sua preparação para interpretarem autónoma e directamente a Bíblia. Francke, com efeito, insistia que até as crianças deveriam ler a Bíblia e fazerem da história bíblica um tema para estudo na escola; pelo mesmo motivo, procurou que a Bíblia fosse amplamente divulgada, especialmente pelo “Canstein Bible Institute”, em Halle. Mas, por outro lado, nem tudo correu bem neste retorno à Bíblia de forma directa. Por exemplo, ao ignorar a influência dos factos e contextos histórico-geográficos no seu sistema de exegese, os pietistas assumiam a Bíblia de forma literal, anacrónica e… subjectiva! O subjectivismo tornou-se até desenfreado, com a Bíblia a converter-se num “livro mágico” no qual previsões, antecipações de cenários e conselhos eram procurados; consultava-se a Bíblia quase como um oráculo! Não tardaram a aparecer as ideias sombrias e apocalípticas sobre as condições prevalecentes na Igreja e no mundo. Dava-se o retorno dos pensamentos voltados para o futuro à luz do passado bíblico, conferindo-se às profecias e escritos apocalípticos uma proeminência que promoveu a tendência pietista ao fanatismo.

Era o reverso da medalha, este carácter prático salutar mas que tendeu para um subjectivismo, perdendo em teologia e ganhando em pragmatismo, mas com os perigos que tal implica a transtornarem este “movimento”. Que subsistiria, porém….

Vítor Teixeira

Universidade Católica Portuguesa

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