A obra do padre Xavier Wendel e o misterioso Dom Pedro
Além de Joseph Tieffentaller, um outro religioso presenciou o triste e sombrio fim da missão jesuíta no subcontinente indiano. Falamos do padre François Xavier Wendel, de origem belga ou alemã, que chegou à Índia em 1751, havendo novas dele em 1756 enquanto residente do colégio de Diu. Seria posteriormente transferido para Agra e depois para Lucknow, em 1763, onde, intimamente associado a Tieffentaller no que concerne às actividades geo-cartográficas, passaria o resto da vida. Uma inscrição datada de 1769 na igreja de Agra atribui-lhe a restauração e ampliação daquele edifício, graças à generosidade monetária do Walter Reinhardt, célebre aventureiro e mercenário que adoptaria o nome de guerra “Sombre”.
Do pouco que se sabe sobre a vida de Wendel, destaque-se a sua presença, em 1766, numa escolta de cavalaria de Agra rumo à cidade de Phaphund a fim de solenizar o casamento do aventureiro francês René Madec com Marianne Barbette; mais tarde, em 1773, consta a sua assinatura nos certidões de casamento e de baptismo da noiva. Apesar disso, e numa altura em que se digladiavam franceses e ingleses pela posse do Nordeste da India, Wendel assumia, contrariamente à esmagadora maioria dos seus pares, uma postura claramente pró-britânica. E a tal ponto que o responsável mor da feitoria francesa de Chandernagore escreveu ao ministro em Paris acusando Wendel de ser um agente de sua majestade. Em 1763, por exemplo, após o massacre de Patna e a subsequente rechaça das forças de Mir Qisim, corresponde-se com o vitorioso major Adams, aproveitando o ensejo para atacar Sombre, “esse bárbaro homicida” que, ironia do destino, seis anos depois irá providenciar-lhe fundos para a restauração da igreja de Agra! O facto de alinhar com os ingleses não o impede de escrever, em 1788, à viúva de René Madec, descrevendo a situação política então prevalecente no Norte da Índia e os sucessos do “afamado” – agora já não o “infame” – Walter Reinhardt Sombre.
Como lembra o padre Noti, Xavier Wendel parece ter sido personagem bastante influente. Só nos arquivos da missão católica de Agra existiam cinco “firmans” outrora concedidos a esse missionário pelo Grão-Mogol – um dos quais, confirma-o em certas aldeias da província de Agra, e um outro a posse do cemitério de Lashkarpur, na própria cidade –, o que diz bastante acerca da sua reputação. Um “firman” era um mandato real ou decreto emitido por um soberano islâmico, podendo ou não estar associado a vários tipos de salvo-condutos.
Ao comando da missão de Agra, Xavier Wendel conseguiu vários direitos para os jesuítas sedeados na Índia mogol e, à semelhança de muitos dos seus contemporâneos confrades, serviu uma potestade local. No caso, a corte de Jawahar Singh de Bharatpur. Nutria tal apreço por ele este rajá que, em Março de 1768, o incumbiria de negociar com os ingleses estabelecidos em Calcutá. No negociamento de Calcutá (gorado devido a alguns distúrbios locais) teve como companheiro um tal “D. Pedro de Silva”, nada mais nada menos, o médico versado em Astronomia trazido de Lisboa pelo padre Manuel de Figueiredo, a respeito do qual já aqui falámos. Pedro Xavier da Silva manteve durante longos anos posições de destaque na Administração Pública mantidas ainda hoje pelos seus descendentes. Na secção “Indian Drawings” do Museu Britânico está patente um retrato de um certo Aqlrnand Khin, também conhecido como Dom Pedro de Silva, fumando uma “huqqa”. O nome de Dom Pedro (também conhecido como Padre Dom Pedro) surge várias vezes no Calendário de Correspondência Persa, publicado pelo Governo da Índia.
Além da amizade que o unia a Joseph Tieffentaller, Wendel privou com o aventureiro, militar e coleccionador de arte helvético Antoine Louis Henri Polier, e com o francês Anquetil Duperron, considerado o pai do orientalismo gaulês e inspirador da prestigiada Escola Francesa do Extremo Oriente. Em 1764, Wendel enviaria a Duperron um mapa da sua autoria mostrando a posição estratégica dos exércitos mogol e britânico na recente batalha de Buxar. Bem mais tarde, em 1779, escreveria um livro de memórias intitulado “Terra dos Rajputs e outras províncias ao sul e sudoeste de Agra”, contendo um mapa por ele desenhado em 1779, e que o clérigo ofereceria ao geógrafo, historiador e percursor da oceanografia, James Rennell. Mais tarde, na preparação do grande mapa do Hindustão, que o tornaria famoso, o britânico não se esquece de lhe dar os devidos créditos.
Em 1780, Wendel conheceu em Lucknow o russo Czernichef, vindo de Bukhara – via Caxemira –, e a ele confiou o seu livro de memórias para que o entregasse em Benares ao coronel Francis Wilford. Este controverso orientalista atribuía origem hindu a todos os mitos europeus, tendo chegado a afirmar que a Índia tinha produzido um Cristo (Shalivahana) cuja vida e obra se assemelhavam ao Cristo da Bíblia. Wendel traduziu para o Francês parte das memórias de Jahangir e o seu tratado sobre os “Jats, Pathans e Sikhs” só em 1979, cerca de dois séculos após ter sido escrito, seria publicado. A 20 de Março de 1803 morria em Lucknow, já com idade avançada, aquele que é considerado como o último representante no Norte da Índia da suprimida Companhia de Jesus.
Joaquim Magalhães de Castro