CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 39

CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 39

O tesouro e o elefante branco

Após a audiência com o rei arracanês, Sebastião Manrique foi convidado a visitar a cidade-palácio. Teve então, como poucos, a oportunidade de presenciar o espólio de guerra arrecadado pelo poderoso Min Razagri, avô de Thiri Thudhamma, aquando da sua acometida sobre a cidade de Pegu, a capital dos birmaneses, em 1599. De lá trouxe, entre muitos objectos de incalculável valor, os bronzes khmer já antes subtraídos do Camboja para o Sião e deste para o Pegu, e aos quais ainda hoje a população atribui propriedades curativas.

Manrique foi conduzido a um edifício com salas revestidas a sândalo e águila, madeira mole e resinosa que os orientais queimam como perfume. Maurice Collis atribui-lhe “uma doce fragrância enjoativa” que evapora num clima frio. Teve a oportunidade de comprovar tal qualidade, pois a sua bengala, feita desse material, tornou-se inodora quando o funcionário e escritor regressou à sua Irlanda natal.

Percorridas as câmaras perfumadas, Manrique acedeu a um pavilhão apropriadamente denominado “Casa do Ouro”: todas as suas paredes encontravam-se revestidas com o precioso metal. Ao longo do tecto, uma videira dourada semelhante à da sala de audiências da corte do Grande Mogol, embora mais sínico no estilo; o caule de ágata, as folhas de esmeraldas e as uvas de pedra granada. Na sala estavam sete ídolos de ouro cobertos com enormes pedras preciosas, “cada uma do tamanho e formato de um homem, sendo o metal mais grosso que a largura de dois dedos”. No pátio ali próximo, na estátua de Tabinshwehti havia sido feito um buraco através do qual se podia aceder às muitas joias que continha. Num outro compartimento, chamou a atenção de Manrique um caixote esculpido e cravejado de pedras preciosas pousado em cima de uma mesa dourada. “Devo confessar”, diz o frade, “que já vi muitas coisas ricas e valiosas noutras partes do Oriente, mas quando abriram o caixote e deparei com os Chauk-na-gat (um par de brincos) fiquei siderado. Mal os podia encarar tal era a intensidade do brilho. São ambos feitos de um só rubi, em forma de pirâmide ou obelisco, e do tamanho do dedo mínimo, sendo a sua base do tamanho de um ovo de galinha anã”. Além das joias, na verdade parte do tesouro real, Manrique deparou com grande quantidade de frascos e jarros dourados, parte do saque birmanês, como posteriormente o informariam.

De seguida, convidaram-no a visitar o elefante branco, animal que voltou a avistar em diversas outras ocasiões e cuja origem e história o interessaram de tal maneira que a ele dedicaria três capítulos da sua narrativa. Para os monarcas locais, o elefante branco tinha mais valor do que todos os reinos do mundo! Escrevia Manrique: “Eu mesmo vi em Arracão o adorno e os serviços prestados a este elefante”. Garantia o frade que sempre que o bicho saía, “mesmo nas ocasiões mais simples, como na Primavera para tomar banho”, colocavam-lhe sobre o dorso um dossel branco bordado com as insígnias da realeza, sendo depois conduzido ao som de música. A acompanhá-lo iam servos com aquecedores de água dourados, jarros, raspadores e outros utensílios para o banho, todos de ouro. Especifica Manrique que em dias de festa o paquiderme envergava um pano de veludo vermelho, com bordas douradas bordadas com pérolas, levando ao pescoço uma pesada corrente de ouro. “As suas presas estavam cobertas com faixas de ouro, nas quais se encontravam pedras preciosas de muitas cores”, continua o agostinho. A posse do elefante branco, uma das cinco joias do Budismo, fora uma das razões que levara Min Razagri a invadir a Birmânia em 1599; como, de resto, fora esse o motivo da ocupação do Sião pelas tropas de Bayinnaung em 1565. Ambos eram fervorosos budistas e ambos se consideravam os mais poderosos monarcas, sonhando ser um dia o Soberano Universal que se apresentaria – algo há muito tempo predicto – como um Salvador, um novo Buda, e restaurador da Era Dourada.

Para dar uma aparência mais budista ao paquiderme, foi oficialmente declarado que se alojava nele a alma de um futuro Buda. Não o próximo Salvador, mas um que viria num futuro remoto, quando a alma, através de inúmeras migrações, havia trilhado já grande parte do caminho rumo à Iluminação. Tal crença fundamentava-se no seguinte facto registado nos clássicos budistas: uma das últimas reencarnações de Buda foi num elefante branco. Na verdade, o dito elefante branco mais não era que um elefante albino com olhos amarelos, um tom de pele rosado, orelhas com manchas brancas e a ponta da tromba e as unhas dessa mesma cor.

Aquando do seu retorno triunfal ao Arracão, Min Razagri ordenou que fossem imediatamente cunhados medalhões e moedas onde, além dos habituais títulos da realeza, constasse a inscrição “Hsin Hpyu Shiuj”, ou seja, “Senhor do Elefante Branco”. Todos os sucessores de Min Razagri mantiveram esse título glorioso até 1652, data após a qual se pode presumir que o elefante branco tenha morrido, muito embora, como lembra Maurice Collis, “enviados holandeses em 1660 tenham dito que o viram”.

Joaquim Magalhães de Castro

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