O Pietismo – V
Deve-se ter uma experiência vitalista da fé, defendem os Pietistas, através da demonstração e comprovação da mesma numa piedade prática, que se obtém pela rejeição do espírito mundano e pela participação activa dos leigos nas reuniões de alguns crentes, ou conventículos de “cristãos convertidos”. O Pietismo é assim um esforço de renovação espiritual no Luteranismo, de redução da jurisdição eclesiástica, dando grande importância à teologia mística e à contemplação espiritual.
O Pietismo surgiu como uma reacção àquilo que consideravam uma degeneração do projecto reformador luterano, tendo começado por demonstrá-lo nas críticas com veemência à imoralidade que imperava desde a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), conflito de grande escala que confirmou e fortaleceu a Reforma Protestante.
Mas nem todos os pietistas concordaram em permanecer dentro do Luteranismo. Nasceu logo, nos alvores do movimento pietista, uma forma de “pietismo radical”, que mais não era do que um ramo daquele que não quis permanecer no seio das igrejas luteranas e reformadas. Defensores de uma igreja formada por fiéis “regenerados”, os pietistas radicais empregariam as influências e directrizes espirituais de Jakob Böhme, Gottfried Arnold e também Philipp Jakob Spener, para propagar um Cristianismo separado do mundo e das igrejas estabelecidas, mesmo dentro do universo protestante.
Esses grupos separatistas encontraram dificuldades de coexistir em países com denominações cristãs estabelecidas e tradicionais, de grande “peso institucional”. Muitos desses radicais emigraram para as Américas e para a Rússia, as terras de refúgio de muitas das cisões nos Séculos XVII e XVII. Alguns formaram comunidades colectivistas, fechadas, como New Harmony, nos Estados Unidos.
EXIGÊNCIA DE SANTIDADE
Se encetarmos uma análise mais doutrinária do programa religioso do movimento, perceberemos que o Pietismo forneceu um meio de resolução para a polémica que existia entre a doutrina da salvação pela graça e a exigência de santidade individual de Deus, fazendo eco de ancestrais aspirações ascéticas, místicas e até monásticas antigas, de santidade mesmo. Essas aspirações têm paralelismos noutras experiências religiosas, como no Islão com os sufis persas do Século X, no Judaísmo (que se revelam neste no hassidismo, por exemplo) e no Cristianismo Ortodoxo e Católico, nestes casos logo nos seus primeiros tempos e depois nas reformas medievais.
Os pietistas mais radicais, principalmente no mundo germânico, incarnam essa recuperação original de uma “teologia do coração”. Que no fundo é uma aspiração de todos os pietistas, que acabaram por se dedicar à reflexão em torno desse desiderato e promoveram a debate académico, logo na criação de meios universitários de matriz pietista. August Hermann Francke, discípulo de Spener, foi um grande organizador e professor brilhante que fez da recém-fundada Universidade de Halle o grande centro intelectual do Pietismo. A Universidade e outras instituições organizadas por Francke em Halle seriam a plataforma de formação e envio de líderes leigos e clericais para influenciar a classe dominante da Alemanha protestante, especialmente a Prússia, bem como a geração mais jovem de pastores. Em contraste com a escatologia de esperança e a expectativa de tempos melhores defendida por Spener, Francke queria mesmo reformar o mundo, ia mais além do pietismo cordato e moderado do seu mestre. O seu método de conversão e educação passou a dominar o Pietismo, à medida que as suas abordagens ao estudo da Bíblia, trabalho missionário e instituições sociais relacionadas com a igreja, lhe trouxeram fama e influência em todo o mundo. Mas nem todos aceitaram a via proposta por Francke, acusando-o de comprometer e avassalar uma teologia poderosa e renovadora ao Estado prussiano e aos seus interesses, especialmente no que concerne aos seus intentos militaristas.
Mas o Pietismo, na essência e na sua maior força, no Século XVIII, e enquanto movimento de carácter filosófico que também foi, ajudou a preparar o caminho para o Iluminismo (Aufklärung), que conduziria a Igreja Luterana numa direcção totalmente diferente. Muitos afirmam também que o Pietismo contribuiu amplamente para o renascimento dos estudos bíblicos na Alemanha e para devolver à religião o seu sentido de algo que é do coração e da vida, não apenas do intelecto. Da mesma forma, o Pietismo conferiu um novo destaque ao papel dos leigos na religião. Para muitos foi a última grande vaga do movimento eclesiástico iniciado pela Reforma Protestante. Outros definem-no como a conclusão e a forma final do Protestantismo. Mas não deixou, no entanto, de enveredar por uma via intelectual, que se tornou em muitas regiões alemãs como proeminente no seio do movimento. Teve também, no entanto, críticos. Como Dietrich Bonhoeffer (1906-1945), pastor e teólogo luterano, fundador da “Igreja Confessante Alemã”, anti-nazi (morreu às mãos destes…), que formulou a mesma caracterização do movimento quando definiu o Pietismo como a última tentativa de salvar o Cristianismo como religião. Para este teólogo, a religião era um termo negativo, mais ou menos um oposto à revelação, o que constitui um julgamento bastante contundente do Pietismo. Bonhoeffer denunciaria mesmo o objectivo básico do Pietismo, o de produzir uma “piedade desejada” numa pessoa, como anti-bíblico…
A estatização do Pietismo mereceu críticas de outros teólogos. O Pietismo é considerado por muitos como a maior influência espiritual que levou à criação da “Igreja Evangélica da União” na Prússia em 1817, uma forma “galicanista” no Luteranismo prussiano. O rei da Prússia ordenou mesmo que as Igrejas Luterana e Reformada na Prússia se unissem. Adoptaram a denominação de “Evangélica”, que é sinónimo de “Protestante” para os alemães, tratando-se de uma designação com a qual ambos os grupos sempre se identificaram. Esta tendência unionista acabaria por se disseminar noutras regiões alemãs no Século XIX.
O Pietismo, neste cenário e com uma atitude mais aberta em relação à teologia confessional, aceitou a possibilidade de união. Mas nem todos a aceitariam, tornando-se dissidentes. Muitos destes emigraram para o MidWest americano e ali formaram a Igreja Luterana – Sínodo de Missouri, rumando alguns depois para a Austrália, onde formaram a Igreja Luterana da Austrália. Muitos imigrantes na América formaram congregações evangélicas “alemãs”, que mais tarde seriam reunidas sob a designação de “Sínodo Evangélico da América do Norte”, que agora faz parte da “Igreja Unida de Cristo”. Mas o Pietismo, apesar das dissidências, não desapareceu….
Vítor Teixeira (*)
(*) Universidade Católica Portuguesa