CISMAS, REFORMAS E DIVISÕES NA IGREJA – CLXIX

CISMAS, REFORMAS E DIVISÕES NA IGREJA – CLXIX

Os Quakers – VI

Mary Penington e Elizabeth Hooton foram duas figuras referenciais dos Quakers na sua fundação, importantes na Inglaterra como também nas Colónias na América do Norte. O sofrimento, a perseguição e as tribulações várias foram quotidianas, mas dão brilho e força ao exemplo que delas se retira e da sua acção determinante. Mas, tal como Fox, não seriam as únicas porta-bandeiras dos alvores do movimento, para o qual foi relevante a acção de outro quaker, principalmente na América, onde fundou um “Estado” e foi um dos grandes pioneiros da construção do País: William Penn.

William Penn nasceu perto de Tower Hill, em Londres, no dia 14 de Outubro de 1644, em plena Guerra Civil, naquela fatídica década na História de Inglaterra. Nasceu num meio confortável e aristocrático, pois era filho do vice-almirante Sir William Penn, uma lenda dos mares. Na década de 1650, durante o “Protectorado” de Oliver Cromwell, o vice-almirante Penn venceu várias vezes os holandeses nos mares, recebendo o posto de almirante e uma propriedade em Shanagarry, na Irlanda. Cromwell enviou-o a liderar uma frota de exploração e conquista de ilhas nas Caraíbas, além do apoio à colonização das Índias Ocidentais, projecto que terminou mal e que lhe valeu a prisão e a confiscação das suas terras. Apesar de tudo, pôde retirar-se para a Irlanda com a sua família.

Mas o jovem William Penn despontava, em juventude e intelecto, estribado na ávida leitura, nos vários géneros que lhe advinham às mãos, mas com destaque para a política e religião. Aliás, eram dois temas em voga então, naqueles conturbados tempos, tão radicais e perigosos. Lia, mas assistia também a palestras e pregações, como sucedeu com uma de Thomas Loe, um quaker que o impressionou de forma decisiva. Tinha dezasseis anos de idade. Rumou, nessa altura, para o colégio de Christ Church, em Oxford.

A Igreja Anglicana era, então, a única forma autorizada de adoração e culto naqueles tempos, com obrigatoriedade de comparência nos actos religiosos, inclusive os estudantes, como Penn. Logo então o jovem demonstrou a sua determinação, pois não aceitou esta imposição sem opção. Como consequência, começou a organizar reuniões de reflexão fora da Igreja Anglicana, desafiando as autoridades escolares. Por volta de 1662, estes não aguentaram mais a irreverência e determinação de Penn, acabando por o expulsar de Christ Church.

CONVERSÃO E MISSÃO

O almirante Penn ficou muito irritado, claro, enviando o jovem para França, na esperança de dissipar as suas ideias rebeldes. Mas, na verdade, Penn aproveitou a oportunidade para explorar ainda mais as suas ideias, matriculando-se na Academia Huguenote (protestante) e tornando-se discípulo de Moise Amyraut, um forte defensor da liberdade religiosa. Mais tarde, regressou a Inglaterra para estudar Direito, planos que a Grande Peste de Londres, iniciada em 1666, fez caírem por terra. Seu pai, por isso, mandou William para longe de Londres, para a Irlanda, para administrar as propriedades de Shanagarry. Foi um envio providencial, pois por ali viria a encontrar novamente Thomas Loe, que o converteu, tornando-se William um quaker convicto.

Mas a sua conversão seria o começo de uma série de problemas. Em 1668 estaria preso durante sete meses devido às suas crenças religiosas. Na prisão, escreveu “No Cross No Crown”, um dos seus livros mais influentes. Naquela época, conheceria Gulielma Springett, filha da já referida Mary Penington e enteada de Isaac Penington, ambos fervorosos quakers. Em 1672, William e Gulielma casaram-se: do matrimónio nasceram sete filhos, de que só dois sobreviveriam.

Em 1670 foi promulgado um novo Conventicle Act, relativo a reuniões públicas, que limitava ao máximo de cinco pessoas, uma forma de suprimir todos os ajuntamentos de pessoas com fins religiosos, mas com excepção para o culto anglicano. William Penn e seu amigo William Mead desafiariam a lei, quando se dirigiram para uma grande multidão em Gracechurch Street, Londres, tendo sido presos e julgados em Old Bailey. O julgamento de Penn-Mead entraria para a história do Direito devido aos argumentos habilidosos de Penn e à coragem do júri em os aceitar e deliberar contra a pressão. Estabeleceu-se mesmo um precedente para o direito dos júris de chegarem a conclusões independentes, sendo ainda hoje referido. Começava aqui uma parte muito importante do legado da Penn, tanto no Reino Unido como nos futuros Estados Unidos da América.

O almirante Penn morreria em 1670, deixando como herança ao filho uma dívida da Coroa orçada em dezasseis mil libras, que Penn, pai, emprestara ao Rei Carlos II aquando a Restauração da Monarquia. Mas o soberano, sem liquidez nos cofres, pagaria em dívida só em 1681, mas em terras. E onde eram essas terras? No Novo Mundo, nos actuais Estados Unidos: na margem ocidental do rio Delaware. Penn aceitou e quis que a província se viesse a chamar “Sylvania”, mas o Rei insistiu para que o nome Penn ficasse prefixado no topónimo, em memória do falecido almirante: assim nascia a denominação de Pennsylvania (Pensilvânia, depois um Estado dos EUA). Penn, filho, foi reclamar as suas terras americanas em 1682, ali permanecendo até 1684 a estabelecer a colónia.

Este período foi aquilo que Penn designaria como a sua “holy experiment” (experiência sagrada), porque entendia que aquele deveria ser um lugar onde os ideais quakers de igualdade, liberdade religiosa e processos democráticos abertos pudessem ser colocados em prática, quando então pareciam impossíveis de implementar na Europa. Penn tratou, por exemplo, os índios Lenape com grande respeito, tendo chegado a firmar com eles um tratado para a divisão e uso das terras. Voltaire (1694-1778) conheceu este tratado, que elogiou, dizendo que fora até então o único “não ratificado por juramento e que nunca foi infringido”.

Penn elaborou também uma constituição notavelmente progressista, na época, para a colónia da Pensilvânia. Este famoso quaker acreditava que se as pessoas tivessem liberdade, educação e direitos iguais sob as leis morais que elas mesmas ajudaram a fazer, as coisas poderiam falhar ou saírem erradas de vez em quando, mas elas se corrigiriam, pois as suas bases eram boas e correctas. Esta constituição viria a servir de modelo para vários outros Estados e tornou-se uma influência fundamental na constituição dos futuros Estados Unidos, que seria redigida, precisamente, em Filadélfia, a maior cidade da Pensilvânia, quase um século depois.

Mas o legado quaker de Penn não ficou por aqui. A sua influência, e dos quakers, era cada vez mais importante e relevante, na sociedade, como na religião e na política.

Vítor Teixeira

Universidade Católica Portuguesa

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