CISMAS, REFORMAS E DIVISÕES NA IGREJA – CCXLVII

CISMAS, REFORMAS E DIVISÕES NA IGREJA – CCXLVII

Os Henricianos – I

Vamos hoje regressar à Idade Média e às suas heresias, rupturas e movimentos de contestação religiosa. Elegemos uma heresia do Século XII, o “Henricianismo”, de origem francesa. Trata-se de uma seita herética que despontou em Tours, França. Surgiu sob a inspiração de Henrique de Lausanne, um pregador itinerante, entre muitos que calcorreavam a Europa. O movimento parece ter tido uma forte ligação aos seguidores de Pierre [Pedro] de Bruys (Petrobrusianismo), que morreu por volta de 1131.

De acordo com Pedro de Cluny – ou Pedro o Venerável (1092-1156), monge e teólogo beneditino da abadia cluniacense –, a heresia henriciana resumia-se nos seguintes elementos: rejeição da autoridade doutrinal e disciplinar da Igreja; reconhecimento do Evangelho como podendo ser livremente interpretado e como a única regra de fé; recusa a reconhecer qualquer forma de culto ou liturgia; condenação do baptismo de crianças, da Eucaristia, do sacrifício da missa, da comunhão dos santos e das orações pelos mortos. Os seus seguidores são conhecidos como henricianos.

HENRIQUE DE LAUSANNE

Este pregador itinerante, pretensamente nascido na localidade, actualmente na Suíça, de que leva o nome, viveu e pregou em França na primeira metade do Século XII. A sua pregação terá começado em 1116, tendo morrido na prisão por volta de 1148. Mas morreu famoso e com um legado que perdurou. Também conhecido como de Bruys, de Cluny, de Toulouse, de Le Mans ou como “o Diácono”, além de por vezes ser referido como Henrique o Monge ou Henrique o Petrobrusiano (confusão com Pedro de Bruys e a sua seita) suscita ainda hoje muitas dúvidas acerca da sua biografia. Não se conhece exactamente a sua data de nascimento, mas como iniciou o exercício da pregação por alturas de 1116, é possível ter nascido no princípio da última década do Século XI. Sabe-se sim que morreu na prisão em 1148.

Antes, numa carta escrita no final de 1146, São Bernardo de Claraval (1090-1153), monge cisterciense coevo de Henrique, convidava o povo de Toulouse a extirpar os últimos restos da heresia henriciana, o que atesta a força e o impacto da mesma. Mas em 1151 alguns henricianos ainda permaneciam no Languedoc. Mais tarde, a recordar essa irradiação da heresia, Matthieu Paris (ou Mateus) – apesar do nome, era um monge inglês, historiador e grande erudito (1200-1259) – relata que uma jovem, que se se entregou milagrosamente inspirada pela Virgem Maria, tinha a reputação de ter convertido um grande número de discípulos de Henrique de Lausanne.

Pouco ou nada se sabe sobre a origem ou início da vida de Henrique. Presume-se que foi monge beneditino, tendo recebido ordens (não se sabe se maiores ou menores), provavelmente na abadia beneditina de Cluny. Se a censura de São Bernardo à sua heresia estiver correcta, Henrique seria um monge apóstata (alguém que renuncia a sua fé ou doutrinação). Segundo o centenário cronista cisterciense Alberic de Trois Fontaines (1152-1250), Henrique era tão somente “um monge beneditino”.

Apesar de monge, com voto de obediência e dever de estabilidade e clausura, da rigorosa ordem de São Bento, Henrique ficou mais famoso por ser um pregador itinerante. É tido como um asceta, bastante alto e carismático, com barba e cabelos compridos. A sua voz era sonora, os seus olhos brilhavam como fogo, reza a tradição. Andava descalço (podia ser com sandálias, não em descalcez total), precedido por um homem carregando um cajado encimado por uma cruz de ferro. Na sua humildade, como apanágio dos ascetas, dormia literalmente no chão e vivia de esmolas. O pauperismo mendicante era já uma marca da sua vida exemplar.

Quando Henrique chegou à cidade episcopal francesa de Le Mans em 1101, o bispo Hildeberto de Lavardin (bispo de Le Mans entre 1097 e 1125) estava ausente em Roma, tendo Henrique recebido permissão para pregar de Março a Julho, uma prática reservada ao clero regular. Parece que logo alcançou considerável influência sobre o povo. O conhecimento do seu ministério baseia-se principalmente em referências do abade Pedro de Cluny. Diz-se, por exemplo, que pregou a penitência, rejeitando a intercessão dos santos e condenando os segundos casamentos. Os seus ensinamentos terão encorajado as mulheres a depor as suas jóias e roupas luxuosas, além dos jovens a casarem-se com prostitutas na esperança de as trazer ao caminho da fé.

Por sua instigação, refere-se também que os habitantes de Le Mans começaram a menosprezar o clero da cidade e a rejeitar a autoridade eclesiástica. Entretanto, D. Hildeberto regressa e tem uma disputa pública com Henrique, em que, de acordo com a Acta episcoporum Cenomannensium(Acta Episcopal de Le Mans), do erudito beneditino maurista (congregação beneditina francesa), D. Antoine Beaugendre, o pregador “mostrou ser menos culpado de heresia do que de ignorância”. Foi então forçado a deixar Le Mans devido ao seu anticlericalismo, tendo provavelmente ido para Poitiers e depois para Bordéus. Mais tarde, é assinalado na arquidiocese de Arles, no Sul de França, onde o arcebispo D. Bernard Garin o mandou prender, encaminhando o caso para o tribunal papal. Corria o ano de 1135, com o arcebispo a conduzi-lo perante o Papa Inocêncio II, em Pisa, onde foi condenado por visões heréticas e instruído a regressar a um mosteiro para se emendar. Parece que São Bernardo de Claraval, grande amigo do Papa Inocêncio II, lhe ofereceu asilo em Claraval (Clairvaux), onde era abade. Henrique, todavia, retornou a Midi, em França, tendo ficado sob a influência de Pedro de Bruys (este morreu em 1131), que também cirandava nos caminhos da heresia. Henrique, depois da morte de Bruys, adoptou então os ensinamentos dos petrobrusianos (de Pedro de Bruys), que começou a difundir por volta de 1135, porém, de forma modificada.

Cerca de quatro anos depois, Pedro de Cluny escreveu um tratado denominado Epistola seu tractatus adversus Petrobrusianos, contra os discípulos de Pedro de Bruys e Henrique de Lausanne, a quem chama, porém, de Henrique de Bruys, acusando-o de pregar, em todas as dioceses do Sul de França, com base em erros que herdara de Pedro de Bruys.

Os ensinamentos de Henrique de Lausanne tiveram sucesso, diga-se, espalhando-se muito rapidamente no Sul de França, em Midi. O impacto deve ter sido importante, uma vez que mereceu a atenção de grandes intelectuais do seu tempo, como vimos, além da convocatória papal e da emenda que lhe foi “sugerida”. A posterioridade estava garantida, pois a sua humildade, pauperismo e ascese, a par da pregação itinerante, se por ele não foram inventados, dele receberam um grande incremento e suscitaram imitação.

Vítor Teixeira 

Universidade Fernando Pessoa

LEGENDA:Lausanne (Suíça)

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