CISMAS, REFORMAS E DIVISÕES NA IGREJA – CCIII

CISMAS, REFORMAS E DIVISÕES NA IGREJA – CCIII

Os Mórmons – XV

Encerramos hoje a série sobre os Mórmons. Uma das mais evidentes demonstrações de vitalidade de uma fé é a quantidade de reformas, cismas, divisões, igrejas e denominações que dela brotam. Como não falta vitalidade no Cristianismo, temos assim que abrir caminho a outras formas de interpretar a mensagem cristã.

Finalizando a abordagem aos Mórmons, falemos de disciplina.

Quais são as razões para se tomarem medidas disciplinares, ou mesmo excomungar um membro, entre os Santos dos Últimos Dias? Um conselho disciplinar, de acordo com os Mórmons, pode ser convocado pelas seguintes razões: “aborto, operação transsexual, tentativa de homicídio, violação, abuso sexual forçado, danos físicos sérios intencionalmente infligidos a outros, adultério, fornicação, relações homossexuais, abuso infantil (sexual ou físico), violência conjugal, abandono deliberado das responsabilidades familiares, roubo, venda de drogas ilegais, fraude, perjúrio ou falso juramento”. Homicídio, incesto ou apostasia são também motivos para um conselho disciplinar. Já agora, a apostasia é definida na doutrina mórmon como o ensino ou observância de doutrinas incorrectas, bem como a oposição pública clara, aberta e deliberada à igreja ou aos seus líderes.

A excomunhão é a punição mais severa que um conselho disciplinar da igreja pode aplicar contra um membro. Desassociação da igreja é a punição a seguir à excomunhão, pela qual um membro permanece parte da igreja, mas não pode entrar no templo, exercer funções de liderança, receber sacramentos ou cumprir deveres sacerdotais. A excomunhão resulta na remoção do nome de um membro dos registos da igreja e na consequente desassociação; um membro excomungado não pode usar roupas de vestir no templo ou pagar dízimo à igreja, além de que a selagem do membro no templo para o cônjuge e filhos é igualmente suspensa. Todavia, os membros excomungados podem regressar à igreja depois de um arrependimento reconhecido e um novo baptismo.

DOUTRINA SAGRADA

A excomunhão é comum? Não sabemos, pois a igreja não anuncia ou comenta publicamente acerca das excomunhões, excepto se a transgressão for pública. Talvez por isso, embora as excomunhões por comportamento imoral sejam de longe mais comuns do que as excomunhões por apostasia, estas últimas são mais públicas porque quem está a ser disciplinado por apostasia é geralmente bem conhecido na comunidade mórmon. De facto, existe dissidência e desafio à doutrina da igreja e aos seus ensinamentos. Por isso, desde meados do Século XX que a igreja começou a disciplinar “à força” os intelectuais mórmons que desafiavam a visão ortodoxa da história. Por exemplo, a historiadora Fawn McKay Brodie, originalmente mórmon de Utah, publicou em 1945 uma biografia de Joseph Smith, “No Man Knows My History”. Foi a primeira biografia moderna do profeta a desafiar as origens divinas das revelações de Smith e d’O Livro de Mórmon. Apesar de pertencer a uma família devota e importante, Fawn foi imediatamente excomungada. Depois, Hugh Nibley, professor da Universidade Brigham Young, mórmon, escreveria uma resposta “canónica” ao livro de Brodie, “No Ma’am That Not History”. Não está claro se o trabalho de Nibley foi uma “encomenda” da igreja, mas o seu ataque foi publicado por um editor mórmon…

Noutro caso, em 1950, uma historiadora mórmon, Juanita Brooks, publicou o primeiro relato completo da cumplicidade mórmon no massacre de Mountain Meadows. Como reacção, ela e o seu marido foram rejeitados pelos membros da sua igreja. Juanita, no entanto, permaneceu activa na igreja e nunca foi excomungada.

Impunha-se uma história concreta e rigorosa da igreja. Um historiador oficial da igreja, Leonard Arrington, começou então a exarar os arquivos da igreja em 1972, promovendo uma “nova história mórmon”, mais complexa, mas mais objectiva, embora “oficial”. Mas depois de uma década de liberdade intelectual, a igreja transferiu, nos anos 80, a secção de história para a Universidade Brigham Young, criando o Instituto Joseph Fielding Smith de História da Igreja. Arrington permaneceu na direcção do instituto até se aposentar, mas era apenas o director nominal…

O exemplo mais conhecido de disciplina eclesiástica sobre intelectuais ocorreria em 1993, quando a igreja excomungou cinco eruditos mórmons e desassociou outro por publicar separadamente artigos que incomodavam os líderes da igreja, pois levantavam questões sobre a doutrina e a história da igreja. Um membro do chamado grupo de “Seis de Setembro”, excomungados, foi D. Michael Quinn, um historiador mórmon assumidamente homossexual, que pesquisou a prática contínua da poligamia por alguns líderes da igreja depois da sua proibição pelo “Manifesto” de 1890. Numa entrevista, Quinn disse que fora um representante da hierarquia nacional a intervir no seu processo para ordenar directamente a sua excomunhão.

Lavina Anderson, outra figura do “Seis de Setembro”, que publicou e editou as publicações mórmons de pensamento livre “Diálogo e Pedra do Sol”, acusou os líderes da igreja de manterem o controlo sobre os estudiosos e intelectuais mórmons, uma prática que a igreja mais tarde viria a confirmar. “Nenhuma outra religião de dimensão considerável na América monitoriza os seus fiéis da maneira” como o faz a hierarquia mórmon, revelariam os jornalistas Richard e Joan Ostling no seu livro “Mormon America”.

Uma vez mais vem à colação o tema da poligamia, teoricamente “extirpada” em 1890, proibida pela hierarquia mórmon, sentenciável com a excomunhão, além de violar a lei civil americana. A contestação, como já se viu, existiu sempre, com alguns a interpretarem que a lei se aplicava apenas a casamentos realizados nos Estados Unidos, acusando-se também alguns altos quadros da igreja de continuarem a prática.

De recordar que em 1904, o presidente Joseph F. Smith publicou mesmo um “Segundo Manifesto”, declarando que qualquer membro da igreja que continuasse a praticar a poligamia seria excomungado. Smith cumpriu a ameaça excomungando dois membros do Quórum dos Doze Apóstolos da igreja. Apesar da proibição e da repressão activa à prática pela própria igreja, grupos dissidentes que se consideram mórmons “fundamentalistas” continuariam a praticar a poligamia. Em 1953, as autoridades estaduais invadiram a comunidade poligâmica de Short Creek, Arizona, uma iniciativa que em nada resultou. E a prática continua em comunidades fundamentalistas, cismáticas.

Também não houve negros sacerdotes até 1978, nem mulheres. Brigham Young, em 1852, declarou: “[Qualquer] homem que tenha uma gota da semente de [Caim]… nele não pode possuir o sacerdócio (…)”. Descendem do proscrito Caim, ou das almas que estavam com Lúcifer… Podiam ser mórmons, mas não sacerdotes. As exigências missionárias em África mudaram a tendência e apareceram alguns pastores negros. As mulheres… já são sacerdotisas, por natureza, e têm a família a seu cargo….

Vítor Teixeira

Universidade Católica Portuguesa

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