O hinduísmo de Ujjain e o mau olhado do regulus
No intramuros de Mandu não faltam mansardas, mesquitas ou templos jainistas, mas é do alto de uma colina, sentados num pavilhão a contemplar o palácio no vale em baixo, expressão maior da arquitectura afegã, que melhor podemos apreciar a celebração em pedra do romance entre o príncipe-poeta Baz Bahadur e a bela consorte, Rani Roopmati. Aquando da passagem de Monserrate e companhia, encontrava-se Mandu sob domínio mogol há já algumas décadas, servindo de idílicos cenários para esplêndidos e extravagantes festejos os seus lagos e palácios.
Dois dias depois, a chegada da comitiva a Usena (Ujjain), cidade que o rajá Jai Singh II (1688-1743) dotaria com um observatório astronómico de excelência, coincide com a celebração do popular Khumba Mela, festividade hindu que de doze em doze anos, e de há séculos a esta parte, congrega milhares de pessoas nas margens do rio Machhiwara. Monserrate chama a atenção para um peculiar cortejo fúnebre nocturno. Carregavam alguns homens, num esquife dourado, o corpo de um velho recentemente falecido e tido como santo. Com tal observância o faziam, que até os pequenos pedaços de palha eram removidos do caminho antes do cortejo chegar a uma enorme pira, enquanto nos incensários colocados no caixão se queimavam incessantemente generosas doses de incenso e especiarias aromáticas. “Quão extraordinário é que os pagãos prestem essas honras a homens a quem eles erroneamente consideram santos, enquanto os perversos renegados da fé cristã recusam tais honras à verdadeira santidade!”, comentava o padre.
Atribui-se a fundação da cidade a Chandragupta, monarca venerado como um deus pelas gentes do Gujarate e províncias vizinhas. Dele dizem ser o “inventor de todas as artes mecânicas”, superstição explicada pelo seu interesse e habilidade nos trabalhos manuais, tendo-o por isso como patrono e santo protector os pedreiros e os carpinteiros. Que foi poderoso e rico, “criador de muitas grandes obras, deixando-nos como memorial da sua glória numerosos templos”, parece não haver dúvidas. Dizia Monserrate que sempre que alguém deparava com um templo vistoso, fosse qual fosse o local na Índia, e inquirisse acerca do seu construtor, ouviria como invariável resposta o nome de Chandragupta. Chama a atenção o sacerdote para o carácter distintivo da arquitectura com o seu selo, “não desagradável ao olhar” embora infinitamente inferior “às glórias da obra romana”. Impossível dissociar tal figura histórica da do lendário Vikramaditya Parmar, “o rei ideal”, reputado pela sua generosidade, coragem e patrocínio dos estudiosos, e cujas acções estão sempre presentes na tradição oral dos indianos.
Em 48 horas apenas chega a caravana a Sarangpur, sede e residência do vice-rei daquela província, e após três dias de descanso e outros tantos de caminhada, com uma travessia do rio Parbati de permeio, atinge o lugarejo de Pipaldhar, assinalado por Monserrate por ali passar o Trópico de Câncer. Segue-se a povoação de Sironj, rodeada de ajuntamentos de pequenas cabanas redondas – na verdade, “em nenhum outro lugar daquela região existem choupanas tão miseráveis”, – e gente subsistindo da agricultura, embora fosse escassa e pobre a terra arável. Era o clima de Sironj tão malsão que “as rachaduras e cantos escuros das casas” se encontravam infestados de todo tipo de vermes venenosos que ali havia em grandes quantidades. Cercavam a cidade colinas rochosas de onde vinham “enxames de feras nocivas, especialmente escorpiões”, cujas picadas causavam terrível agonia embora não fossem necessariamente fatais, ao contrário das mordidas de “certos lagartos encontrados nos pântanos vizinhos”.
Destaca o nosso padre um tipo de lagarto, o regulus, morfologicamente próximo das osgas, com uma coloração bastante exuberante e o “tamanho de um arganaz”, assemelhando-se no seu todo ao camaleão, “que se alimenta de ar e se disfarça com a cor do objecto que estiver mais próximo”. Ora, acreditavam piamente os locais ser o referido bicho capaz de matar com o olhar! Mas, “como a misericórdia de Deus decretou”, só no caso de não o ver o homem primeiro, pois o regulus, “à semelhança do lobo”, se confrontado, recua precipitadamente. Porém, se algum infeliz é previamente escrutinado pelo regulus, “que como outras criaturas desta classe tem muito orgulho da sua própria beleza”, sem que aquele se aperceba, fadado estará a morrer pouco tempo depois, pelo menos assim “declaram vigorosamente os habitantes desta região”. Monserrate dá exemplos. Um dos padres, atraído pela beleza da criatura, tentara pegar num regulus e como não conseguira tinha-o seguido até a um matagal onde o réptil num ápice se escondeu. De regresso a Sironj perguntou o clérigo aos locais que espécie de lagarto era aquele. E tal foi a surpresa daquele gente, que o padre Monserrate a compara à dos moradores de Malta, ao verem São Paulo sair ileso da mordidela de víbora que o surpreendera, atribuindo o milagroso facto à intervenção divina.
Joaquim Magalhães de Castro