A Religião da Humanidade – I
O Positivismo é uma religião? Ou qual a relação entre Religião e Positivismo? Para muitos, religião, genericamente, é “teologia” e “instituições religiosas”, ou seja, um conjunto de crenças em divindade(s) e organizações que promovem, organizam e ritualizam essas crenças. Para Auguste Comte, o “fundador” do Positivismo, esta é uma «doutrina filosófica, sociológica e política». No Positivismo, que abarca um conjunto de teorias, muitas contraditórias ou difusas, o conhecimento científico é a única forma de conhecimento verdadeiro. Como é que então algo tão científico se torna religião?
De acordo com os positivistas, a Teologia e a Metafísica nunca foram a fonte de uma religião verdadeiramente racional. Esta surgiu apenas com o positivismo comtiano. A unidade espiritual estabelece-se assim através da Ciência, surgindo desta forma a ideia religiosa, com aquilo que se designa como “Religião da Humanidade”, cujo principal objectivo é a procura da “regeneração social e moral”.
Se dizemos que a Religião Católica se fundamenta em São Tomás de Aquino, a Religião da Humanidade apoia-se na filosofia positivista de Auguste Comte, a qual se fundamenta na Ciência Clássica. Em termos gerais, a Religião da Humanidade possui, como Ser Supremo, a Humanidade Personificada, a deusa dos positivistas. Esta representa o conjunto de seres que convergem de todas as gerações, passadas, presentes e futuras, do eterno devir, as quais contribuem, na linha dos tempos, para o desenvolvimento e aperfeiçoamento do Ser Humano.
A FÉ POSITIVISTA
O dogma da Religião da Humanidade é a Ciência, na sua forma mais autêntica. O que parece ser complexo e mesmo contraditório. Mas vejamos então. Esta religião tem cultos, ao Grão-Ser dos positivistas, que é a Humanidade. Estes cultos desenrolam-se em templos e capelas próprios. Usam-se símbolos, sinais, estandartes, vestes litúrgicas, há dias de santos (grandes figuras humanas), sacramentos e liturgia, comemorações cívicas e até mesmo um calendário próprio, o denominado Calendário Positivista (calendário lunar composto por treze meses de 28 dias).
Fé e instituição, apoiados na Ciência, nada falta como religião. E tem mesmo um lema, altruísta e filantrópico: “O Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por fim”. “Viver às Claras” e “Viver para Outrem”, são a fórmula de vida da religião positivista para se aplicar no quotidiano. O termo “altruísmo”, que parece ter sido “criado” por Comte, resume o conceito, ou ideal, da Nova Religião que o mesmo fundou, a partir da sua obra “Sistema de Política Positiva” (1851-1854).
Religião é também instituição, para os positivistas. Mas não é só isso: há fé e teologia, mas há também boas obras, práticas, instituições, ideias, valores que permitem ao ser humano um melhor conhecimento de si próprio, com vista ao seu aperfeiçoamento e desenvolvimento integral. Para o positivismo, a religião é um esforço moral e intelectual que ajuda o ser humano a melhorar como indivíduo, como membro de uma família, como cidadão e como integrante da Humanidade. Por isso, se designa de Religião da Humanidade.
Os positivistas definem-se como seres religiosos. Mas não acreditam em deus(es), mas sim nos seres humanos, que pretendem melhorar a cada dia. A religião é essa crença no ser humano, não a crença nos deuses, defendem.
COMO SURGIU ESTA RELIGIÃO?
A história da Religião da Humanidade está ligada ao encontro de Auguste Comte com a senhora Clotilde de Vaux (1815-1846), em Paris, no ano de 1845. Comte mal conheceu Clotilde ficou imediatamente apaixonado por ela. Que era uma jovem casada, embora abandonada pelo marido, escondido na Bélgica para fugir a dívidas de jogo. Clotilde não nutria, porém, os mesmos sentimentos pelo filósofo, mas tal não obstou a que viessem a desenvolver uma intensa amizade e relação intelectual, igualmente de natureza epistolar – ao longo do único ano que durou a amizade trocaram 183 cartas. Com efeito, Clotilde morreria em 1846, vítima de tuberculose. Esta experiência dolorosa cimentou a compreensão, em Comte, da supremacia do sentimento sobre a racionalidade para a elevação moral dos homens. E foi a partir dessa inspiração no sentimento amoroso que sentira por Clotilde que Comte começou a elaborar, a partir dos anos 1850, as bases de uma “religião positiva”, em torno de princípios cívicos e morais como o altruísmo e a honestidade. Mas, refira-se, os rituais e iconografia que criou ou desenhou são inspirados na Religião Católica, embora despidos das respectivas crenças metafísicas.
Na Religião da Humanidade criada por Comte, no entanto, não há um Deus sobrenatural, não há transcendência divina, como não se acredita na vida depois da morte. Há uma homenagem à Humanidade, que é o conjunto dos homens vivos e mortos, segundo os positivistas. O culto presta reverência aos antepassados, com liturgia e sacramentos, numa prática ritualizada que procura fortalecer os laços sociais entre os homens, a solidariedade entre as gerações e a transmissão do conhecimento. Assim se procura consolidar a garantia da continuidade da História, que é assumida como um processo estimulado pelo aperfeiçoamento do conhecimento e orientado para o progresso.
No seu calendário, a Religião da Humanidade celebra homens e mulheres que contribuíram para fortalecer os valores e impulsionar a história da civilização ocidental. Do ponto de vista simbólico, a Humanidade é representada por uma mulher com os traços de Clotilde de Vaux, a musa de Comte, com uma criança no colo, símbolo da continuidade e renovação entre gerações, logo da própria Humanidade.
Mas nem tudo se fundou de forma linear, como normalmente é apanágio da utopia positivista. A formulação da Religião da Humanidade provocou uma divisão entre os discípulos de Comte, muitos deles antiteístas (na recusa do teísmo) ou ateus, que recusaram a ideia religiosa do positivismo científico e racional. Como doutrina religiosa, implantou-se em diversos países da Europa, nas Américas e na Ásia.
Foi no Brasil que a Religião da Humanidade ganhou maior número de adeptos e teve maior impacto na sociedade, em instituições e reformas políticas. O primeiro templo brasileiro construído exclusivamente para o culto positivista, segundo as orientações deixadas por Auguste Comte para a edificação de espaços de culto, foi o Templo da Humanidade, situado no Rio de Janeiro. No Brasil, basta ver o lema que está inscrito na bandeira do País, “Ordem e Progresso” (foi retirado “Amor”, entretanto), para atestarmos essa influência positivista na nação brasílica.
Vítor Teixeira
Universidade Católica Portuguesa