Cartas do Bornéu – 19

As lantacas do sultão

Em 1523, Simão de Abreu seria enviado de Ternate a Malaca pelo primo António de Brito, inaugurando, por assim dizer, uma nova rota regular entre as Malucas e Malaca, fazendo ao mesmo tempo a primeira aproximação oficial lusa ao arquipélago filipino. Era a via do Bornéu que se abria em toda a sua extensão (até então as viagens oficiais regressavam sempre ao porto de origem, ou seja, Malaca), muito mais curta do que o caminho de Java e Banda, e que seria oficializada em 1526 pela viagem de D. Jorge de Meneses, assistindo nós aqui a uma reedição da visita da frota de Magalhães cinco anos antes, pois também Meneses é recebido com honras e fausto na corte do sultão Bolkiah. Descreve deste modo o acontecimento o insuspeito João de Barros: “por muitas outras ilhas, de que aquele mar é muito sujo, chegou à de Bornéu, ao porto da cidade, que está em cinco graus de altura da parte do Norte; e depois de mandar presentes a el-rei, e el-rei a ele, fez o seu caminho por entre muitas ilhas e restingas que estão na paragem do Bornéu, em sete graus”.

Na sequência dessa viagem, com origem em Malaca, Jorge de Meneses descobriria ainda as terras dos papuas e, no seu regresso, seria nomeado capitão de Ternate. Foi nessa condição que enviou, em 1527, Gomes de Sequeira, cuja expedição, desorientada uns graus por efeito de um temporal, acabaria por descobrir um conjunto de ilhas que durante breves anos ostentariam o nome do navegador português. Seriam colonizadas pelos espanhóis que as baptizariam como Ilhas Carolinas, em honra do rei Carlos II e, em 1899, as venderiam aos alemães. Ocupadas e administradas pelo Japão a partir de 1914 ficariam na posse dos Estados Unidos no final da Segunda Guerra Mundial até se constituírem em dois Estados soberanos: Palau e Micronésia.

A escala nos portos do norte do Bornéu era de grande conveniência, permitindo uma ligação mais segura e rápida a Malaca, até pela sua proximidade com o sul do arquipélago filipino. Por essa razão, motivaria outra importante expedição, desta feita liderada por Simão de Vera, ocorrida doze meses após a de Gomes de Sequeira e que teria um desfecho trágico.

Como resultado de várias viagens, sempre com presentes de cortesia para o sultão local, paulatinamente se foi sedimentando uma feitoria portuguesa em Kota Batu, capital do sultanato do Brunei, ainda activa em 1535, mas que seria temporariamente encerrada por ordem real, para reabrir anos depois, mantendo-se em actividade até 1641.

O historiador Pierre Yves Manguin chama a atenção para a primazia que os portugueses lograram obter em relação aos chineses – seus mais concorrentes directos e há muitos anos denominadores comuns naquelas águas – devido à sua capacidade de produzir armamento, espingardas, munições e canhões, isto séculos depois das outroras poderosas fundições de Macau (que teve em Manuel Tavares Bocarro o maior expoente) durante os séculos XVIII e XIX.

Famosas se tornariam as lantacas produzidas nas fundições do sultão do Brunei, certamente sob a supervisão de mestres portugueses, e que ainda hoje constituem símbolo absoluto do País. Certos exemplares encontram-se expostos nos museus e, alguns deles, de dimensões extremamente reduzidas, foram ao longo dos tempos utilizadas como moeda da troca. Lantacas em forma de dragão escamado de boca e olhos bem abertos e com pequenos animais montados no dorso: serpentes, rãs, carneiros, cães, macacos e lagartos.

A presença lusa naquelas paragens manter-se-ia assim intermitente até porque a tentativa de controlar posições nas Filipinas – conseguida pouco tempo depois da passagem de Magalhães (essa matéria, aliás, será alvo de próximas crónicas) – teve trágico desfecho na sequência das mal sucedidas incursões navais de Gonçalo Pereira Marramaque (ainda hoje muito presentes na memória oral dos povos daqueles mares) ocorridas entre 1566 e 1568. Marramaque foi incapaz de travar o estabelecimento dos espanhóis em Cebu, levado a cabo por uma potente frota comandada por Miguel Lopez Legazpi.

Também Gonçalo Pereira esteve, em 1566, fundeado no porto do Brunei, tendo o capitão enviado Luís de Andrade, futuro alcaide-mor da fortaleza de Ternate, com um presente para o sultão, como relata Gaspar Correia na sua obra “Lendas da Índia”.

A expedição de Legazpi resultaria, após sucessivas tentativas, no controlo de Manila, em 1570. Constituiria passo decisivo de ocupação de todo um conjunto de ilhas que pertenciam ao sultão do Brunei e que culminaria, em 1578, com a anexação da capital do sultanato, embora de modo temporário, pelo então governador de Manila, Francisco de Sande, muito provavelmente, e como o apelido indica, de origem portuguesa, pois Sande é o nome de uma povoação perto de Guimarães.

Três anos depois acontecia Alcácer-Quibir. A anexação de Portugal à sua rival e vizinha Espanha acabaria definitivamente com qualquer pretensão lusa de controlar o arquipélago. Até 1599 manter-se-ia o conflito entre espanhóis e malaios, altura em que se formalizam as relações comerciais num clima de paz. Os portugueses, agora sob domínio castelhano, continuaram a frequentar o porto de Kota Batu onde foram sempre bem recebidos pelo monarca local. Numa das recepções concedida a um capitão de um navio português, em 1578, é-nos fornecida uma curiosa informação: o sultão jogava xadrez.

Joaquim Magalhães de Castro

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