Cartas do Bornéu – 13

As convulsões de Api-Api

O solo agora ocupado pela capital da província malaia de Sabah estava ainda muitíssimo longe se tornar uma realidade urbana quando ao largo da sua costa, em Julho de 1521, bolinaram as naus Trinidad e Victoria, embora a região envolvente integrasse, desde a centúria de Quinhentos, o império do Brunei, cuja sede do poder os viajantes ibéricos tinham acabado de visitar.

Kota Kinabalu teve a sua origem na vizinha ilha de Gaya, habitat natural duma pacífica tribo de sama-bajaus, “ciganos do mar”, onde, em 1896, a Companhia Britânica do Norte do Bornéu (BNBC), empresa privada feita batedora das aspirações coloniais da velha Albion, estabeleceu um entreposto que passado pouco tempo seria incendiado por um grupo de locais liderados pelo régulo Mat Salleh.

Reincidentes, os britânicos aperceberam-se então das excelentes condições portuárias da aldeia piscatória no lado opoente do estreito, que já em 1697 aparece representada num mapa holandês das Celebes e do Bornéu como Api-Api, designação pela qual é ainda hoje conhecida Kota Kinabalu entre a comunidade chinesa local, maioritariamente hakka.

Ora, se considerarmos que tais mapas eram cópias de congéneres portugueses (prova disso é que os holandeses nem se deram ao trabalho de alterar a maioria dos vocábulos), é muito provável que Api-Api fosse conhecida dos mercadores lusos que nela não acharam qualquer valor comercial. Aliás, em toda a costa setentrional do Bornéu, na época compreendida entre os séculos XV e XIX, apenas o porto do Brunei teve relevância económica.

O termo Api-Api derivava de uma bastante comum árvore de raízes vistosas e de um dos rios da região, embora o local em questão fosse também conhecido como Deasoka, “sob os coqueiros”, e Singgah Mata, “agradável à vista”, designações imortalizadas na toponímia da actual cidade que elege como fruto-rei o durião – mencionado no Colóquio de Garcia da Orta e pela mão de portugueses plantado no Ceilão – com direito a murais nas paredes de alguns edifícios das perpendiculares ruas da baixa onde é vasta a comunidade chinesa, não tanto quanto a de Sarawak (como constataremos em futuras crónicas) mas que mesmo assim atinge os cinquenta por cento da população citadina. Os demais autóctones, caso dos dasuns-kadazans, gente agrária e sazonalmente mercadora de produtos agrícolas e florestais (arroz, madeira, âmbar) trocados na costa por sal e peixe salgado, de tão integrados quase não se distinguem dos malaios. Pode-se até dizer que a sua língua e cultura correm sério risco de extinção. Há ainda distintivas bolsas de euro-asiáticos, paquistaneses e “sino-kadazans”, ou simplesmente “sinos”, resultantes de casamentos entre chineses e dasuns-kadazans. Reconhecemos feições dessas em alguns dos vendedores dos mercados da cidade onde o sumo de manga e o de lima valem um ringgit o copo, e um pouco mais do que isso os alternativos (ou complementares, consoante os gostos) teh tarik (chá com leite) ou tongkat-ali, tonificante à base de um tubérculo sempre presente nas bancas de berma de estrada, lado a lado com os molhos de espigas de milho assado, batata doce a granel, cachos de bananas ou garrafas de mel.

A progressiva chegada de colonos justificaria o cais e uns quantos edifícios administrativos que em 1899 dariam substância à então renomeada localidade de Jesselton, tributo onomástico ao vice-presidente da BNBC, Charles Jessel. No fundo, não passava de um mero terminus da linha ferroviária Bornéu do Norte, menina dos olhos da capitalista companhia, conveniente porto de escoamento da riqueza produzida no interior da luxuriante e, em grande parte da sua área, impenetrável ilha. Ali era embarcada a borracha, a rota, o mel e a cera. O projecto empresarial de Jessel e associados foi-se fazendo, mas não sem uma forte resistência por parte dos povos nativos. Rebeldias refreadas pelas esporádicas incursões dos barcos e homens da companhia nos coitos dos piratas, endémicos naquelas águas e inimigos de todos. De resto, estratégia utilizada com maior sucesso em Sarawak e que se inspirava na política de alianças com reinos nativos implantada pelos portugueses desde o século XV. Primeiro, em África; depois, e com mais significativa expressão, no Oriente.

Jesselton voltaria a ser Api-Api após a ocupação nipónica que nas redondezas manteve um dos mais infames campos de detenção. Inúmeras seriam as rebeliões dessa altura também, destacando-se a de 1943, levada cabo pela dita “guerrilha Kinabalu”. Se já na retirada britânica voluntariamente fora destruída parte das infraestruturas da cidade, a remanescente sucumbiria após os bombardeamentos “libertadores” da Campanha do Bornéu, em 1945, quando dia e noite, e durante seis meses consecutivos, do céu pareciam cair mais bombas do que chuva.

Um ano depois, incapazes de gerir uma cidade devastada, os accionistas da BNBC deixaram-na aos cuidados da Coroa Britânica, que optaria por concentrar aí todos os esforços de reconstrução pós-guerra, em desfavor de Sandakan, também ela uma ruína. Jesselton assume-se como capital da Colónia da Coroa Bornéu do Norte que, em 1963, já designada Sabah, juntamente com Sarawak, Singapura e a Federação Malaia formam a Federação da Malásia. Três anos mais tarde, desfasada dos novos tempos, Jesselton passava o testemunho a Kota Kinabalu, ficando assim honrada a montanha vulcânica que lhe está próxima e que, se formos bem a ver as coisas, é a mais lógica explicação para o antigo nome Api-Api, “fogo-fogo”, ou seja, “incêndio”.

Joaquim Magalhães de Castro

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