Cartas do Bornéu – 1

Selamat Hari Natal

Enquanto o politicamente correcto, essa novel e pegajosa maleita do século presente, medra e se derrama por esse mundo fora, atingindo, inclusivamente, foros de irracionalidade em países como o Canadá, que recentemente interditou por decreto governamental que todo e qualquer organismo público desejasse aos cidadãos em geral, e visitantes em particular, o “Feliz Natal”, como sempre se fez ao longo dos tempos naquele vasto e florestado território, apresentando como alternativa a socialmente aceitável e anódina saudação “Festas Felizes”, e isto (veja-se lá onde chega a histeria!), dizem eles, “para não ferir as suceptibilidades das comunidades não cristãs do País”, na Malásia, nação maioritariamente muçulmana, gigantescos cartazes publicitários junto às intersecções viárias e centros comerciais exibiram durante largas semanas bem legíveis desejos de “Selamat Hari Natal” e “Merry Christmas”, sem complexos nem rodriguinhos culpabilizadores, dirigidos a crentes e a descrentes; a nazarenos ou maometanos, a hindus, budistas, taoístas, animistas; a afins, avatares e aos eventuais extraterrestres que por lá tenham passado. E por tal atrevimento nenhum mal veio ao mundo.

Toma lá ó Ocidente decadente, que já almoçastes!

O fenómeno teve particular visibilidade na ilha do Bornéu, onde abundam chineses de confissão cristã. Porém, e como no melhor pano cai a nódoa, nesse intervalo geográfico chamado Brunei-Darussalam (tudo o que resta da outrora potestade imperial do Bornéu), encastoado entre as províncias malaias autónomas de Sabá e Sarawak, mantêm-se interditadas as celebrações públicas de Natal, isto apesar da significativa percentagem de cristãos a residir, permanente ou temporariamente, no sultanato (dez por cento dos seus 400 mil habitantes), na maioria gente de etnia chinesa, mas também assalariados vários originários da Índia e das Filipinas.

O castigo para quem ouse celebrar a data de modo visível é o de uma multa de vinte mil dólares e até cinco anos de prisão, com a agravante de poderem ser aplicadas as duas medidas simultaneamente. Assim o obriga a sharia, assim o ordenou o sultão, assim teve de ser, assim vai continuar. Está ainda proibido o proselistimo, o casamento entre muçulmanos e pessoas de outros credos e a apostasia daqueles é punida, na maior parte dos casos, com a pena de morte. Também a construção de novas igrejas está fora de questão, e as que existem podem ter o alvará retido, se tal se justificar.

As agressivas e fanáticas seitas evangélicas, mormons e companhia, não perdem pela demora e, na impossibilidade de “pregarem em casa, pregam no quintal”, movendo-se livremente pelo Bornéu malaio. Certamente não será coincidência a presença de alguns ocidentais, provavelmente mormons, que vislumbro, do autocarro onde viajo, a poucos quilómetros da terra de ninguém que separa a fronteira do Brunei com o Sarawak. Especados junto a uns semáforos, recorrendo a uma técnica de marketing muito em voga nos Estados Unidos de América, agitam freneticamente uns cartazes que prometem a salvação das almas…

A interdição brunaica resulta da segunda fase da implementação da lei sharia, entrada em vigor em 2014, que autoriza a aplicação de castigos corporais, como o açoitamento e o apedrejamento. E os cristãos locais, alheios a ela, sem sinais de receio, marcam presença nas celebrações de fim de semana nos dois mais importantes locais de culto, situados bem no centro da Bandar Seri Begwan (assim se chama a capital), junto ao mercado nocturno, e a poucas dezenas de metros um do outro. Refiro-me à igreja anglicana dedicada a Santo André, um bonito edifício de madeira e de cor azul, e a igreja católica em honra da Nossa Senhora da Assunção, que tem a ela anexada uma escola onde está proibido o ensino de qualquer matéria relacionada com o Cristianismo.

Em busca de eventuais sobrenomes portugueses nas placas funerárias, indicativo de resquícios de uma possível comunidade luso-descendente, entro, por engano, no templo anglicano. É sábado, fim da tarde, e, tendo em consideração a realidade local, não estranho que sejam tão poucos os fiéis ali congregados. «Celebramos hoje a missa, pois amanhã haverá uma actividade desportiva na cidade e o trânsito manter-se-á cortado todo o dia», comenta um dos fiéis, revelando uma pontinha de queixume. Era como me estivesse a dizer: “se a corrida é de manhã porque razão não abrem a estrada durante o resto dia?”

Em frente, oposto o panorama. Muita gente entra no terreno adjacente à igreja de Nossa Senhora da Assunção. No seu interior, de forma octogonal, sucessivas filas de bancos de madeira corridos, todos eles preenchidos. Ali, antes da Eucaristia, reza-se o terço, durante uma boa hora, enquanto os carros vão chegando e depositando novos fiéis. Chineses, filipinos, e alguns indianos. Por breves momentos, julgo voltar a estar do outro lado da fronteira. Embora, nunca, em momento algum, me tenha sentido deslocado da paisagem, antes pelo contrário. A um primeiro olhar, e a quem vem de visita ao Brunei, nada revela o severo punho das radicais medidas que a sharia impõe. Nem mesmo os hijabs na cabeças das mulheres, não mais comuns aqui do que na vizinha Malásia.

Joaquim Magalhães de Castro

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