Porto de barcos e pétalas vindas do ar
É do conhecimento público que a região de Aveiro, assim como o resto de Portugal, é rica em igrejas, capelas e outros templos religiosos. Na sua maioria são católicos, mas também os há de outras confissões religiosas.
Esta semana iremos voltar a falar de mais uma pequena pérola da Igreja Católica, desta feita uma capela no Concelho de Ílhavo, que fica mais próxima de Aveiro do que da sua sede de concelho.
A Capela da Nossa Senhora dos Navegantes, localizada bem junto da barra da Ria de Aveiro, é o ponto de chegada da mais importante, e talvez mais emblemática, manifestação religiosa das pessoas ligadas à vida na Ria e no mar. Refiro-mo-nos às celebrações em honra de Nossa Senhora dos Navegantes, que se assinalam anualmente em Setembro.
A Capela, situada no Forte da Barra, faz parte de um pequeno largo e foi erguida no Século XVIII. Tem características invulgares, com as suas paredes ameadas e a fachada principal com o portal em pedra ançã em espiral, e apenas uma só nave com uma fachada de portal em arco quebrado.
Quanto às celebrações, ainda não tivemos oportunidade de as ver ao vivo, mas recentemente vimos um programa de televisão em que falavam da sua história e significado. Apesar de vago, deu-nos vontade de saber mais e daí surgiu a ideia de o partilhar com os nossos leitores.
Sendo uma das mais emblemáticas celebrações religiosas dos gafanhões (a gente das Gafanhas), os cagaréus (os aveirenses) também participam em grande número. Uma das suas particularidades é tratar-se de um desfile na água. Tem início no Porto Bacalhoeiro e termina na Capela da Nossa Senhora dos Navegantes, mesmo junto ao Forte da Barra e ao conhecido Jardim Odinot.
Sendo uma procissão da “malta” do mar, é normal que seja vivida com mais intensidade por esta parte da comunidade. No entanto, nos últimos anos, tem evoluído para ser um dos grandes cartazes turísticos da região. Algo muito semelhante ao que acontece a Sul, na Ria Formosa, e que vos falámos numa crónica de 2019.
A última procissão realizou-se em 2019 pelo que este ano a comissão organizadora espera poder voltar à água e assim honrar Nossa Senhora dos Navegantes.
A participação no evento tem crescido de ano para ano e na edição de 2019 foram registados centenas de barcos, de pescadores, moliceiros, modernos veleiros, pequenos barcos a motor e até rebocadores…
Num documento que fala do surgimento desta tradição ficámos a saber que afinal não é assim tão antiga. Apenas remonta à década de setenta do Século XX. A iniciativa foi originalmente pensada pelo padre Miguel Lencastre que após uma viagem a Porto Alegre, no Brasil, decidiu organizar a procissão na água, à semelhança do que havia visto em terras de Santa Cruz. O religioso visitou esta cidade do Rio Grande do Sul numa das últimas décadas em que os fiéis brasileiros tiveram a oportunidade de celebrar Nossa Senhora dos Navegantes na água. No Brasil, a tradição surgiu em 1912, pela devoção à Santa por parte dos colonos vindos dos Açores, mas interrompida pela Marinha Brasileira em 1989 depois de um grave acidente, o naufrágio do barco turístico Bateau Mouche IV.
O religioso português viveu a experiência na viagem ao Brasil, tendo participado nas celebrações das pessoas ligadas ao mar, um dia que é também aproveitado pelos umbandistas para celebrar a deusa das águas, Iemanjá. Duas iniciativas que ainda hoje decorrem em simultâneo nesta zona do Brasil sem qualquer crispação com a comunidade católica, em sã convivência religiosa.
No Brasil, desde a ordem da Marinha, a manifestação religiosa tem lugar em terra nos primeiros dias de Fevereiro. Já em Portugal, inicialmente a procissão é feita por terra, em direcção ao mar.
As festividades são da responsabilidade do Grupo Etnográfico da Gafanha da Nazaré, com o apoio da respectiva paróquia. Se bem que este ano ainda nada esteja decidido, normalmente o evento inclui um festival de folclore e a actuação de bandas musicais, tradicionais ou populares, em arraiais que duram noite fora com grande participação; de ano para ano tem vindo a atrair cada vez mais forasteiros, e mesmo estrangeiros, que em Setembro visitam Aveiro em grande número.
O desfile começa com uma procissão a pé, que parte da Capela da Cale da Vila, junto ao Rio Boco, onde se encontram os bacalhoeiros, até à embarcação destinada a levar a imagem sagrada até à sua capela na boca de mar. Do Porto Bacalhoeiro (também conhecido por Porto da Pesca de Largo ou Cais Bacalhoeiro), onde actualmente se encontra a totalidade da frota que se dedica à captura do “fiel amigo” nas águas do Atlântico Norte, segue a procissão flutuante, com inúmeros barcos a juntarem-se à romaria que passa por São Jacinto, antes de alcançar o destino final já num dos braços da Ria de Aveiro, junto ao jardim com o nome do engenheiro responsável pela Ria como a conhecemos actualmente: “Odinot”. Neste momento já os barcos se contam às centenas, daí ser esta a parte mais conhecida da festa em honra de Nossa Senhora dos Navegantes.
Outro dos pontos altos da cerimónia é a chegada ao Forte da Barra, onde a imagem da Santa aporta em terra, enquanto uma avioneta sobrevoa a zona lançando pétalas de rosas sobre a multidão. Esta tradição das pétalas das rosas realiza-se quase desde a primeira edição da procissão flutuante e foi inspirada na celebração de Nossa Senhora do Mar, na Praia das Maçãs, da qual também aqui vos falámos há algum tempo.
João Santos Gomes