Caminhos do Brasil

Caboclos, engenhos e azulejos

Se em Minas Gerais foi o ouro o motor do desenvolvimento e das tragédias, a riqueza de Pernambuco trouxe-a o açúcar, plantado em grandes extensões centradas nos engenhos – que ainda hoje se podem visitar – palco de desmandos de coronéis, e a sua relação com caboclos e cangaceiros, de que todos já ouvimos falar, pois Lampião e quejandos foram sobejamente retratados nos romances, no cinema e na banda desenhada. Mas com a riqueza sobreveio a guerra: Pernambuco, facilmente acessível por mar, foi assolado por holandeses e franceses. E se nos séculos XVI, XVII e XVIII se cobiçavam as riquezas produzidas na terra – houve alturas em que mais de 500 engenhos operavam simultaneamente – hoje são os mangais, as dunas e as águas cristalinas o que mais de precioso há a preservar.

Porto de excelência, que começou por ser um apêndice da já estabelecida povoação de Olinda (Recife), “o Arrecife quinhentista” era, em 1609, um simples acumulado de casas que em quinze anos apenas se transformaria num traçado urbano povoado por duas centenas de portugueses muito devotos, que para o provarem erigiram a capela de São Pedro Gonçalves, ou do Corpo Santo, como também era conhecida.

À força de se entulharem terrenos alagadiços, a localidade foi-se expandindo, e de uma forma desorganizada surgiram ruas paralelas. Curiosamente, a cidade só adquiriria esse estatuto com Maurício de Nassau, governador holandês que em 1637 assumiu as rédeas do poder (sete anos após a conquista da cidade pelos seus compatriotas), começando por fundar o bairro de Santo António, na época uma das três povoações que acabariam por dar origem ao Recife propriamente dito.

Agora existem muitos outros bairros, ligados por uma extensa marginal, que só não constituem um elo urbano ainda mais longo porque entre Vitória e Joabatão de Guararapes há que deixar um corredor aéreo, pois o aeroporto fica muito perto da cidade.

Os pernambucanos orgulham-se da derrota que infligiram aos holandeses, em 1648, na famosa batalha de Guararapes (que faz lembrar o feito de Aljubarrota), num local assinalado hoje por um miradouro e uma maqueta onde o episódio é retratado num cenário em miniatura. Este é um excelente posto de observação para quem, como eu, gosta de ver levantar e pousar os aviões.

Expulso o invasor holandês, as ordens religiosas regressaram em força, prontas a restaurar os antigos conventos e mosteiros e, claro, a erguerem mais e mais igrejas. A que me interessa surgiu de uma iniciativa dos franciscanos que a dedicaram a Santo António, mesmo ao lado de um convento que já exista em 1606.

 

A RIQUEZA DOS AZULEJOS

Uma vez no interior travo conhecimento com o frei Salvador Macedo de Oliveira, que está na Ordem há cinquenta e quatro anos. Contrariamente ao que se passou no convento de São Francisco, em Salvador da Baía, aqui é tudo facilidades.

«– Pode fotografar à vontade», convida o simpático frade, aproveitando para me chamar a atenção para o avançado estado de degradação dos azulejos do claustro.

«– O salitre está a destruí-los», comenta.

Não precisava de o dizer, o facto salta à vista. Há até secções onde esses azulejos, fabricados em Portugal no reinado de D. João VI, já caíram. Quando lhe pergunto se há algum projecto de restauro previsto pelo IPHAN (instituição brasileira que zela pelo património) ou por alguma entidade portuguesa, frei Salvador desabafa:

«– Até agora ainda não vi nenhum português chegar aqui não».

E aproveita para recordar que em Salvador tem havido muito mais investimento na recuperação do património, pois «os azulejos de lá estão em melhores condições».

No convento de Santo António, que completou quatrocentos anos em 2007, vivem doze frades, entre brasileiros e alemães. De tempos a tempos o franzino frade, irrequieto e sempre sorridente, dá-me algumas indicações. Conduz-me por um corredor até uma das portas de saída do convento.

«– Debaixo das pedras deste corredor foram enterrados muitos frades portugueses, assassinados durante um ataque holandês», diz.

Reparo que a porta de cor verde tem as mesmas barras de ferro, para a tornar mais resistente. Pelos vistos, de nada valeu.

O conjunto de azulejos no interior retrata cenas da criação do mundo e está em muito melhor estado que o do claustro. Todo o mobiliário da sacristia é feito em madeira de jacarandá. Frei Salvador destaca a pia baptismal, um cadeirão de estilo D. João V e um bonito e compacto armário com dezenas de pequenas gavetas.

«– Era aqui que os frades guardavam os seus pertences», diz.

Indica ainda uma pesadíssima mesa colocada no meio da sacristia a que chamam “mesa de bolacha”, devido à forma torneada da madeira na sua base.

É tempo agora de visitar a capela do convento. Os azulejos nas paredes laterais representam a vida de Santo António e os ladrilhos pequeninos no tecto abobadado foram colocados pelos holandeses.

«– Descobriram isso recentemente», informa frei Salvador, que, antes que partamos, faz questão de lançar um apelo em frente da minha máquina de vídeo. Lembra ao «nosso querido Portugal, nossa mãe, que veio de lá para cá, descobrindo esta terra maravilhosa de Santa Cruz» a sua obrigação «para salvar toda a história do azulejo do Brasil que pertence totalmente a Portugal», concluindo, em jeito de bênção, que «há que procurar o mais rápido possível soluções de restauro e de vida, ámen».

A Igreja da Ordem Terceira fica colada ao convento de Santo António, o Imperador, mas a sua administração é feita separadamente.

«– As Ordens Segunda e Terceira estão sob a nossa protecção espiritual», atira o frade, à laia de despedida.

Invertem-se agora os papéis. Ao contrário do que se passou em Salvador, no Recife são os responsáveis da Ordem Terceira que começam a complicar, conduzindo-me a um quarto onde terei de aguardar para poder falar com um dos responsáveis que irá ou não conceder-me autorização para fotografar. Claro que não fico à espera, pois logo me apercebo que é mais fácil fazer a visita na condição de turista, e assim tirar as fotos que quiser, pois ninguém me irá impedir de o fazer, como não impedem os restantes visitantes.

A decoração interior, da autoria de António Santiago, é unanimemente considerada pelos especialistas da história da arte «a mais importante obra de talha do espaço português». Nas paredes laterais podem ser apreciados vistosos retábulos. A pintura é, aliás, a componente predominante, e uma vez mais deparo com temas alusivos ao Oriente, desta feita alguns quadros que contam a história dos franciscanos martirizados no Japão. Há, no entanto, uma série de pinturas que me deixam intrigado, pois foram vandalizadas. Alguém riscou os olhos de todos os personagens ali retratados.

«– Consta que foram os judeus que fizeram isto, por não concordarem com a versão dos factos expressos nestas obras de arte», diz-me em voz baixa o religioso.

«Mas quais factos?», apetece-me perguntar. Pois. Se calhar deveria ter aguardado na sala, obedientemente, pelo tal responsável da Ordem Terceira…

 

O DESEJO DE DUARTE COELHO

«Mas que lindo local para erguer uma vila», teria dito um subordinado de Duarte Coelho (há quem atribua a frase ao capitão donatário) ao subir a colina que se ergue a norte da actual cidade de Recife. Desde então muita obra foi feita no lindo lugar de Olinda, graças aos proveitos da produção da cana-de-açúcar, uma economia onde tiveram um papel fundamental os cristãos-novos portugueses aqui refugiados, que na cidade vizinha fundariam a primeira sinagoga das Américas e anos mais tarde estabeleceriam as bases da hoje poderosíssima comunidade judaica de Nova Iorque.

Nem a destruição e o saque perpetrados pelos holandeses que obrigaram a uma alteração radical do tecido urbano – que é o actual e data do século XVIII – impediu essa evolução, que culminaria, em 1982, na obtenção do almejado título de Património da Humanidade. A tal se deve, com certeza, a harmonia mantida entre os edifícios e os espaços verdes, ainda hoje um dos principais atractivos deste aprazível local cantado por Alceu Valença, filho da terra, que não hesita em chamar “minha mulher” a Olinda: “Tu és linda/Para mim és ainda /Minha mulher/Calada /O silêncio rompe a madrugada”.

Já o sociólogo Gilberto Freyre, autor de um dos livros fundadores do pensamento moderno brasileiro, Casa Grande e Senzala, diz que «não há apenas as árvores que convivem numa excepcional intimidade com as igrejas antigas. Há também os pássaros e as crianças», justificando o seu fascínio pela cidade do seguinte modo: «Tudo isso é por causa da luz, que permite que a natureza refresque constantemente a tradição».

Joaquim Magalhães de Castro

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *