Caminhos do Brasil

Alaide do Feijão e a Baixa dos Sapateiros

O enorme casarão amarelo que se avista em frente ao mosteiro alberga os irmãos mais necessitados que chegaram à idade da reforma. No frontispício pode-se ler: “Lar Franciscano de Santa Isabel”, seguido das iniciais V.O. 3ª S. F. Ou seja, Venerável Ordem Terceira de São Francisco. Já tinha reparado que a padroeira dos franciscanos surge frequentemente em quadros afixados nas paredes do antigo mosteiro, sempre no meio de grupos rivais, refreando os ânimos, apaziguando as hostes.

«– Cada janela corresponde a um quarto», esclarece Raimundo. Ali são acolhidos os irmãos quando precisam e têm mais de sessenta anos. Eles podem entrar e sair quando quiserem e podem até jantar fora. Não é um asilo, antes uma espécie de hotel com todas as comodidades. «– Entre nós ninguém passa mal», garante o meu interlocutor.

Aproveitando o ensejo, Raimundo diz-me que a instituição a que pertence possuía muitos recursos e «por isso procurava adquirir objectos que outros não podiam ter», como é o caso dos azulejos, dos lustres e do mobiliário. As pessoas que ingressavam na Ordem tinham de ser brancas e abastadas. Hoje já não importa a condição social. Para entrar basta ser apresentado por um irmão. A única exigência é que o candidato seja católico.

Raimundo tem agora sob a sua alçada mais de 170 casas que foram doadas ao longo dos tempos pelos irmãos e cujo aluguer serve para obter rendimentos para manter o lar franciscano.

«– Era uma fórmula que eles encontravam para pagar a sua passagem para o céu. Se chegaram lá ou não, não sabemos», comenta, com um sorriso malandro.

 

AO FUNDO DA LADEIRA

Espreito os telhados da cidade, aproveitando as janelas e as portas que vou ou não podendo abrir. Na viela em frente, a Rua 12 de Outubro, que desemboca na Rua de Santa Isabel, cadeiras e mesas de plástico aguardam turistas que tardam em aparecer, e um polícia conversa com a dona da mercearia Alaide do Feijão. Num primeiro plano avista-se o casario tradicional; num segundo plano as construções modernas. As pessoas que sobem e descem a rampa que desemboca na Baixa dos Sapateiros (uma realidade bem distinta da do Pelourinho) são todas de extracção africana. E maioritariamente toxicodependentes, idosos, mendigos. A partir das seis da tarde é suicídio descer à Baixa dos Sapateiros. E mesmo no perímetro do Pelourinho, o melhor é não andar pelos becos sozinho.

«– Estamos no cocuruto do morro», informa Raimundo. «– Os antigos eram muito sabidos. Tinham tudo cercado para se defenderem dos índios e dos piratas. Sobretudo destes últimos, que queimavam usinas e igrejas».

Depois, apontando para a rua em baixo, prossegue:

«– Ao fundo desta ladeira, que não passava de um precipício de mato e pedra, havia um portão, o portão do Carmo. Havia um outro a Sul, na ladeira de São Bento. Ambos fechavam às cinco da tarde».

O património mais valioso da Venerável Ordem de São Francisco é a sua igreja, com altares em talha dourada, um órgão e dois faustosos camarotes.

«– Eram reservados ao pessoal da alta sociedade. Governadores, bispos, capitães», informa. «– E como eles brigavam muito, tinha de haver dois para os separar. Era assim em todas as igrejas».

Presentemente um dos camarotes serve de plataforma de eleição para melhor se poderem apreciar os ornatos que preenchem as paredes e a abóbada da igreja; o outro serve de escritório a Raimundo. Reza-se aqui a missa uma só vez por mês, mas os casamentos acontecem com muita frequência e são uma boa fonte de receitas.

Inesperadamente, uma bela voz de soprano (só pode ser de uma cantora profissional) testa a acústica do local. Por breves minutos a mulher canta, imperturbável, como se essa fosse a sua forma de oração e ali estivesse sozinha.

Finalizamos a nossa visita junto às escadas de acesso ao rés-do-chão onde está uma outra mulher sentada a uma mesa com toalha de renda, um pequeno televisor a pilhas, um vaso de flores, um calendário e um telemóvel. É ela a guardiã do museu.

Raimundo aproveita para nos lembrar, em jeito de conclusão, que a Santa Casa da Misericórdia, «muito mais rica do que nós», foi a primeira instituição de beneficência a ser fundada no Brasil, precisamente em Salvador da Baía. Quanto à Ordem que faz parte, foi a terceira do género, depois da de Olinda e do Rio de Janeiro.

 

SAGRADO VERSUS PAGÃO

Cá fora avista-se agora um considerável número de turistas, maioritariamente brasileiros. Vendedores de bijutarias com fiadas de colares de missangas pendendo das mãos nervosas acercam-se das portas da igreja de São Francisco que estão prestes a abrir. A gestão deste valioso património pertence aos franciscanos da Primeira Ordem. Ou seja, aos monges propriamente ditos. A fachada é bem mais sóbria do que a do mosteiro adjacente, mas o seu interior é um dos mais exuberantes exemplos do barroco português em todo o mundo. Uma placa azul informa: “Construção iniciada em 1708 e concluída em 1723. Sua decoração é um exemplo do barroco da primeira metade do século XVIII e realiza o ideal da Igreja de ouro que surgiu em Lisboa no final do século XVII. Dos templos de Salvador é o mais rico em obras de talha dourada e primorosos azulejos”.

Informação recolhida noutra fonte, porém, garante-me que a Ordem dos Irmãos de São Francisco de Assis foi fundada em 1635 e a igreja construída em apenas dois anos, entre 1702 e 1704, e que a partir de 1730 houve trabalhos de ampliação nas salas contíguas.

Confundido com este duplo cartão de visita, entro no átrio e peço para falar com o responsável. Sai-me na rifa um frade com cara de poucos amigos e sotaque germânico que começa por me dizer que não está autorizado a deixar-me fotografar o interior, mas logo depois afirma que sim, que o posso fazer desde que avance com trezentos reais que me serão devolvidas logo que «providencie a matéria escrita» referente ao projecto em que estou envolvido. Também devo garantir, por escrito, que as minhas fotos não têm qualquer pretensão comercial. Desculpa-se o frade que «todos (fotógrafos, presumo) dizem o mesmo», mas que nunca ninguém cumpre com o prometido. Não percebo muito bem o que ele quer dizer com isso… É claro que declino a proposta e pago o bilhete de entrada para simplesmente visitar o local, sem direito a fotografia. Qual não é o meu espanto quando, ao entrar na igreja – após apreciar as cenas religiosas e laicas dos azulejos que decoram o claustro, também em mau estado – reparo que toda a gente fotografa e filma o que muito bem lhe apetece, havendo até quem se dê ao luxo de tocar na talha e nas estátuas que estão ao alcance da mão, seguindo, de resto, o exemplo de alguns dos guias. Disparam-se fotografias atrás de fotografias, fala-se em voz alta e apesar dos constantes avisos – “Atenção! O flash corrói as imagens” – as luzes não param de piscar nas dezenas de aparelhos fotográficos.

O interior desta igreja é, de facto, de uma sumptuosidade única, um verdadeiro desafio aos sentidos marcado pela omnipresença da talha dourada. Os azulejos da sacristia mostram-nos cenas bíblicas (entre os protagonistas destes gigantescos painéis identifico o rei Salomão e São Sebastião) e cenas rurais. Também eles carecem de alguma restauração, mas certamente não é com os bilhetes cobrados que irão conseguir dinheiro para levar a cabo a necessária tarefa.

O Largo do Cruzeiro, mesmo em frente, é um óptimo local para fotografar a fachada da igreja, discreta mas com coloridos azulejos geométricos à semelhança de muitas igrejas portuguesas. É um cruzeiro de pedra de liós, dessa que vinha a fazer de lastro nos porões dos navios saídos de Lisboa. Num dos vários edifícios patrimoniais que rodeiam o largo tem a sua sede a Protecção ao Turista, a Deltur, e toda a área circundante é incessantemente percorrida por inúmeros vendedores ambulantes de cocos, bananas e pastéis, os meus já bem conhecidos “salgados” a um real a unidade.

Apesar de me sentir injustiçado, não me dou ao trabalho de apresentar o meu protesto junto do frade alemão, até porque hoje é Terça-Feira da Bênção, dia de concertos gratuitos nos largos de Jubiabá, Teresa Baptista e Quincas do Berro de Água. Esta noite – lembro-me bem da última vez que cá estive – as ruas apertadas transformar-se-ão numa espécie de Bairro Alto tropical. Em tudo igual, até nos níveis de sujidade e ruído. Entre as bandas destacadas para actuarem no largo contam-se os Samba da Maria – “samba de roda electrónico” – o DJ Bandido, os Segure o Tombo, os Um Konto e os Exilados do Sistema. Sempre muito criativos estes nossos amigos brasileiros, quando se trata de arranjar nomes ou alcunhas.

Pelas ruas, grupos de crianças e adolescentes rufam já tambores, numa antecipação à noite de festa.

Joaquim Magalhães de Castro

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