Caminhos do Brasil

Monges construtores

Garantido o alojamento (prioridade das prioridades) apanho o autocarro para a Praça de Mauá, pois dizem-me que o Mosteiro de São Bento se situa nessa área. Apesar dos dois quilómetros de distância apenas, passo uma hora e meia num infernal pára arranca – um caos total! Ainda bem que não optei pelo táxi.

O primeiro transeunte que abordo na Rua Sacadura Cabral, onde existem pensões baratas mas pouco recomendáveis, aponta na direcção de um arranha-céus com janelas de vidro. «– É para ali». Mas… como pode ser? Um mosteiro dentro de um prédio? Imaginem o meu espanto que pensava ter de subir um morro…

«Só pode estar escondido», deduzo, em pensamento. Atravesso a Avenida Rio Branco, entro na Rua Dom Gerardo, e no número 68 deparo com uma entrada que dá para um minúsculo espaço verde literalmente entalado no betão. A pequena placa acastanhada não deixa dúvidas: Mosteiro de São Bento. Um monge de batina preta que desde a rampa confirma: «– É mesmo aí em frente».

Não fico muito impressionado com a fachada do convento. Claro que um céu azul daria toda uma outra dimensão a este rigor de sobriedade com duas torres laterais que me fazem lembrar o Castelo da Feira (recordação da minha adolescência) e, a estrutura no seu todo, o mosteiro e a igreja dessa mesma cidade que tem as suas origens nos primórdios da Nação. Aliás, qualquer câmara municipal do interior português rivaliza em imponência com este edifício, onde predominam o granito e as paredes brancas. Os portões são de ferro forjado. Não podia ser mais português.

Guardado por uma estátua do patrono, o mosteiro encontra-se na segunda fase de obras de restauro com patrocínio da Petrobras e o apoio institucional do IPHAN e do Ministério da Cultura.

Antes de entrar no edifício para tentar encontrar Frei Mauro (presumo que seja o entendido capaz de prestar algumas declarações e contar-me a história do local), dou uma vista de olhos a um despenhadeiro ali próximo. Inadvertidamente, deparo com uma placa de plástico afixada na parede de um edifício contíguo onde funciona uma escola, dando-me conta que este é também Património Mundial da UNESCO. Nele está escrito o seguinte: “A Ordem Beneditina instalou-se neste morro no final do século XVI e iniciou a construção do mosteiro em 1617, e da igreja em 1633. Esta é a terceira mais antiga abadia das Américas. Tombado pelo IPHAN em 1938, o conjunto foi considerado pela Unesco Património da Humanidade.”

Em todas as listas consultadas até então nada corroborava esta afirmação. Mas que boa surpresa!

 

LISBOA NOS TRÓPICOS

Por entre o frondoso arvoredo que partilha espaço com os automóveis estacionados, que tiram dignidade ao conjunto monástico (é difícil fotografá-lo sem nada em frente), observo o pouco do que resta da cidade antiga, escondida por edifícios construídos nas últimas décadas do século passado.

A destruição do centro histórico do Rio de Janeiro teve lugar no início do século XX. Começou pela descaracterização do morro do castelo e o derrube da igreja onde se situa agora a estação Central Brasil (que é título de filme muito premiado), e teve o seu momento mais negro com o abate de 540 edifícios históricos para dar lugar à Avenida Presidente Vargas. Num mapa da cidade ela surge-nos como uma verdadeira cicatriz cortando cerce ruas e ruelas de traçado irregular, grande parte delas inspiradas nas ruas da velha Lisboa. Rua da Alfândega, Rua da Conceição, Rua do Carmo, Rua do Ouvidor, Rua da Glória, Rua da Lapa, Rua do Teatro, Rua da Misericórdia, Rua de São Bento, Rua Luís de Camões. É toda uma Lisboa aqui exposta. Não fosse essa régua colocada na perpendicular da capital carioca, a gigantesca Presidente Vargas.

Apesar dos estragos, porém, muito se mantém preservado. Se nos limitarmos ao jardim do Campo de Santana e à zona ribeirinha em frente à Ilha das Cobras, podemos enunciar os seguintes locais de interesse: Arcos da Lapa, Arquivo Nacional, Casa da Moeda, Real Gabinete Português de Leitura, Paço Imperial, Palácio Tiradentes, casarões vários que albergam importantes museus, e, claro, muitas igrejas. As igrejas de São Francisco de Paula, da Candelária, da Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência, de Santo António, da Nossa Senhora do Carmo e a antiga Sé. Curiosamente, no Brasil as igrejas mais importantes, independentemente da sua situação geográfica, têm similar designação. Quase sempre são dedicadas a São Francisco da Penitência, à Nossa Senhora do Carmo, ao Santo António ou então a São Bento. Neste país, os jesuítas, que chegaram tardiamente, não edificaram muitas igrejas dedicadas a São Paulo como acontece no Oriente. Igrejas que simultaneamente eram centros de divulgação de saber, como se sabe.

Claro que se sairmos do perímetro atrás definido e formos ao longo da Avenida Infante Dom Henrique, que se esconde por detrás da Praia do Flamengo, e continuarmos rumo à praia do Botafogo, seguindo pela reentrância que parece querer voltar a fechar a Baía de Guanabara (e fecha mesmo), culminando nesse marco de referência que é o Pão de Açúcar, estaremos a percorrer as origens da cidade, presentes ainda hoje no bairro de Urca, à guarda da pouco acessível Praia de Fora e do Forte de São João.

Não há melhor local para apreciar o Pão de Açúcar que a zona envolvente ao monumento a Estácio de Sá, fundador da cidade, e ao museu dedicado a Carmen Miranda, a portuguesa que os brasileiros com toda a propriedade consideram deles.

Flamengo, Botafogo, Vermelha, Fora. Nomes de praias que encerram em si um período conturbado de lutas pela posse desta cidade tão abundantemente cantada, filmada, descrita, poetizada, sonhada. Como se vê, não falta história ao Rio de Janeiro.

 

RELÍQUIA DO PASSADO

Escondido na selva de cimento e betão armado, o Mosteiro de São Bento é uma verdadeira relíquia que pode passar despercebida a um olhar menos atento. A sua construção data de 1590, quarenta anos depois da fundação da cidade, e deve-se à iniciativa dos beneditinos João Porcalho e Pedro Ferraz, “já nascidos em terra brasileira, em Ilhéus”, como especifica Frei Mauro. Quando jovens, acompanhados por um colega, foram estudar para Lisboa, onde se fizeram monges, tendo depois regressado ao Brasil. Começaram por fundar um mosteiro em Salvador da Baía, em 1589, e vieram depois para o Rio onde estabeleceram o Mosteiro da Imaculada Conceição. O de São Bento só seria implantado em 1633, tendo sido antecedido de um projecto anterior, da autoria de Francisco de Frias, que não passaria do papel.

O mosteiro era certamente, à época da sua edificação, um dos locais mais aprazíveis do Rio, com as ondas do Atlântico a molhar-lhe os alicerces.

O interior é obra de dois invulgares artistas portugueses. Frei Bernardo de São Bento, “o grande arquitecto deste mosteiro”, e o entalhador Frei Domingos da Conceição, “natural de Matosinhos”. Ambos nasceram em Portugal, vieram para o Brasil, aqui casaram, tiveram filhos e, uma vez enviuvados, enveredaram pela vida monástica.

Outros do mentores foi Frei Ricardo Pilar, nascido em Colónia, Alemanha, autor dos doze painéis que podemos apreciar num dos tectos da igreja. A sua principal obra, “Senhor dos Mártires”, encontra-se na sacristia.

Frei Mauro lembra que, «por tradição, os artistas e construtores de imóveis deveriam pertencer à Ordem Beneditina». A única excepção laica do conjunto de arquitectos que idealizou a construção, é o engenheiro mor Francisco de Frias da Mesquita, encarregado do projecto em 1617.

Joaquim Magalhães de Castro

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