Caminhos do Brasil

As missões jesuítas de Santo Ângelo

Porto Alegre, cidade fundada por 60 famílias de colonos açorianos, que defino como ponto de partida, se bem que a estrada tenha começado umas boas semanas antes, também em Porto Alegre, trampolim para uma agradável estadia na verdejante região do Gramado que teve como suplemento (bela surpresa, cortesia da fundação Misiones Iguassu) uma visita à serra gaúcha e ao território das missões jesuítas dos índios guaranis, nos limites da linha traçada pelo Tratado das Tordesilhas, cuja disputa de séculos, que culminaria na devastadora guerra do Paraguai, estaria na génese da definição das actuais fronteiras de quatro Estados sul-americanos, todos eles vítimas de ditaduras, todos eles renitentes em guardar alguns tiques bolivaristas desadequados da época em que vivemos.

A viagem de regresso de autocarro até Porto Alegre, atravessando as terras situadas entre o rio Ijui e o rio Ijuizinho, com uma paragem na povoação de Soledad, é marcada por uma sucessão de vales verdes ondulados que dão lugar a outros vales mais profundos, como que cavados na paisagem.

Esquina do Nunes e Reduto do Nunes são algumas das muitas designações deveras peculiares com que os incógnitos personagens da história local baptizaram estas paragens na época dos bandeirantes. Ainda hoje, na região de Ijui há muita gente que reivindica as suas raízes lusitanas.

O Pereira de Abreu de que falei atrás esteve também envolvido na fundação de Porto Alegre, tendo no processo cativado os casais que inicialmente pretendiam povoar as reduções dos jesuítas das Missões Orientais mas que acabariam por ficar na novel cidade. O bairro onde permaneceram ganhou o nome de Porto dos Casais.

Qual cereja no topo do bolo, foi-nos oferecida uma viagem à exuberante e húmida Foz do Iguaçu, também ela reserva da UNESCO, na secção do património natural. Daí, uma vez cumprido o programa planeado, os meus companheiros de jornada regressaram a casa. E eu retomei o caminho para Santo Ângelo, aproveitando para visitar de novo, agora com mais algum tempo, as missões dos guaranis.

Sedeada no Brasil, a Misiones Iguassu trabalha em rede com congéneres nos países vizinhos. A ideia dos seus patronos, de entre os quais destaco Geovani Gisler, meu anfitrião, nativo de Santo Ângelo, é criar aqui uma rota ao estilo da de Santiago de Compostela, apostando forte no turismo religioso. E para tal conta com a devoção dos turistas ibéricos. Só que esse objectivo deve demorar algum tempo a manifestar-se, porque – pelo menos para os portugueses – o Brasil continua a ser sinónimo de praia e vida airada; da mesma forma de que para o brasileiro Portugal continua a ser o país de homens de bigode farfalhudo e as canções do Roberto Leal.

As reduções jesuíticas eram compostas por admiráveis construções de tijolo e saibro que constituíram, numa época marcada pelos ideais utópicos de filósofos iluministas como Voltaire e Montesquieu, uma tentativa de estabelecer uma sociedade de cariz comunitário baseada nos princípios da igualdade e fraternidade. Pelo menos esta é a versão que nos dá uma determinada plêiade de historiadores, que, correndo o risco de julgar a história, apresentam a situação que se vivia na época de um modo maniqueísta. Ou seja, de um lado estavam os jesuítas e os índios pacíficos; do outro, os portugueses e espanhóis, invasores e cruéis.

Como muito bem se sabe, a crueldade já existia antes da chegada do homem branco ao continente americano, e até o próprio Rousseau, defensor da teoria do bom selvagem, estaria ciente disso, embora não lhe desse jeito admiti-lo, o que faz dele um indivíduo “politicamente correcto” antes do tempo.

As tribos indígenas do continente sul-americano guerreavam entre si desde o início dos tempos e praticavam o canibalismo ritual, pois acreditavam que comendo a carne do inimigo vencido obteriam o seu poder.

Por outro lado, os jesuítas tornaram-se progressivamente cada vez mais comerciantes (e até soldados) e menos padres, chegando mesmo a ter ambições políticas ao tentarem criar um Estado no espaço fronteiriço de dois impérios “legitimados” pelo Tratado de Tordesilhas.

Convém não esquecer também que apesar de terem resgatado tribos inteiras das garras dos esclavagistas portugueses e espanhóis (e também dos Paulistas, que estiveram na génese da identidade do Brasil de matriz europeia), os jesuítas não eram assim tão inocentes, pois inculcaram nos guaranis uma religião que lhes era estranha e recorreram à sua mão-de-obra para construir as belas igrejas, que embora estejam em ruínas constituem ainda magníficos blocos arquitectónicos vermelhos que despontam de uma terra com a mesma cor. Sim, porque a Terra Brasilis é vermelha. De barro. Toda ela.

De entre os jesuítas sobressaíram ilustres figuras como a do padre metalúrgico António Sepp, também músico e cronista, e a dos padres arquitectos Primoli, Grimau, Forcada e Ribera, responsáveis pelas admiráveis fachadas dos sítios arqueológicos – todos eles com o selo da UNESCO, Património da Humanidade de matriz espanhola – de São Miguel das Missões e São João Baptista (Brasil), San Ignacio Mini e Santa Ana (Argentina), e Jesus de Tavarangue e Santíssima Trinidad (Paraguai), esta última a maior e a mais vistosa de todas.

Foram estes jesuítas iluminados que ensinaram aos guaranis as técnicas da escultura na madeira e na pedra (o belo resultado desse trabalho pode ser visto nos museus locais), da pintura e da música ocidental. Nas paredes interiores de algumas dessas igrejas são visíveis altos-relevos que representam anjos a tocar instrumentos ocidentais – violino, harpa, trompete, órgão de tubos, flautas. A actual presença da harpa na música tradicional paraguaia é resultado desse ensinamento.

O legado deixado pelos índios enriqueceu também – e muito – a cultura local. O churrasco e o chimarrão (o chá mate), tão populares na serra como na pampa, não passam de adaptações europeias de hábitos seus. E o gaúcho, na verdadeira acepção da palavra, é o resultado da mestiçagem entre o branco e o índio, guarani ou de outra qualquer tribo.

Missão em vão, pois um conselho científico reunido de Coimbra, que reavaliou a Lista das Maravilhas, acabou por retirar estas candidaturas. E, verdade seja dita, com alguma legitimidade, pois esse é, apesar da passagem portuguesa, que aqui foi particularmente destruidora, trata-se de património de origem espanhola.

Mas não gostei nada dessa decisão, como não gostou quem em terra gaúcha fronteiriça tanto primou e que até mostrava preocupação pelo facto de os locais serem constituídos com duas maravilhas, quando deviam funcionar como um só, poder ser um factor negativo na altura da votação.

A este respeito Geovani Gisler fez-me chegar um e-mail perguntando-me porque razão as Missões tinham sido retiradas da Lista, e a verdade é que eu não soube o que lhes responder.

Joaquim Magalhães de Castro

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *