Bosquejos das Ancestrais Ilhas do Trato – II

Questões do Paraíso

Nos dias que se seguiram às explosões junto ao Sari Club, em Bali, a 12 de Outubro de 2002, os jornais, revistas e televisões de todo o mundo falavam de “paraíso perdido”, “inocência perdida”, “terror no paraíso” e coisas do género.

Como é óbvio, há imensas versões do paraíso e muitas maneiras de o encarar ou de o vislumbrar. Há mesmo quem o consiga descobrir, pelo menos partes dele, escondido, nos recônditos mais obscuros do inferno. Tudo depende dos gostos pessoais de cada um e daquilo que consideram bem estar e razão de existir.

No que à viagem diz respeito há quem considere verdadeiro paraíso umas férias pagas e preço de ouro num resort de luxo, arredado da realidade local, das moscas e dos vendedores de praia. Outros acham mais graça a certos desconfortos como seja o quarto com ventoinha de tecto e as conversas num botequim local com os naturais da terra que sempre nos fazem aprender coisas novas. Para estes últimos a versão do paraíso passa por um contacto directo com a realidade do sítio que visitam. Para os primeiros é precisamente o contrário, quanto mais longe da verdade, melhor. Não é esse afinal o grande poder do dinheiro: ajudar-nos a alhear-nos da realidade em que vivem milhões de seres humanos nossos semelhantes?

Tanto uma como outra são opções legítimas, dependentes do carácter e formação da pessoa, do peso da bolsa que transporta, da disposição na época do ano ou do tempo que se tem à conta.

 

TURISMO QUE VEM DE LONGE

 

Bali, nesse campo, tem de tudo e para todos. Tem Nusa Dua, um luxuoso enclave turístico criado sob a supervisão do Banco Mundial com o intuito de trazer à ilha o maior número de dólares possível com o menor impacto no seu frágil ecossistema, já de si abalado por inúmeros anos de turismo em massa. Sim, porque Bali é talvez o local da Ásia que vê chegar turistas há mais anos.

Já na louca década de trinta desembarcavam mensalmente aqui uma centena de aves raras europeias e americanas. Charlie Chaplin foi uma das celebridades da época que de imediato se rendeu aos seus encantos, mas muitas outras personalidades do mundo artístico- literário, menos conhecidas, escolherem Bali para viver. Entre elas o artista plástico mexicano Miguel Covarrubias, autor do clássico “Ilha de Bali”, ainda hoje um introdutório à cultura balinense; os pintores holandeses Walter Spies e Rudolf Bonnet; o musicólogo norte-americano Colin McPhee e a sua mulher de origem portuguesa, a antropóloga Jane Belo. Outros, mais empreendedores, como o casal Koke, viram em Bali uma forma de assegurar a reforma, construindo, em 1936, junto ao fino e branco areal de Kuta o Kuta Beach Hotel, que as autoridades coloniais holandesas de então, de uma forma depreciativa, apelidaram de “um par de cabanas sujas de nativos”.

O Kuta Beach Hotel seria o percursor de centenas de outros que, sobretudo a partir da década de sessenta, fizeram de Bali um dos destinos turísticos asiáticos mais apelativos. Robert Koke, que após a experiência hoteleira vendeu os seus serviços à CIA, gabava-se de ter introduzido em Bali a arte de surfar as ondas do mar, o que faz dele uma espécie de guru de milhares de surfistas que ao longo do ano rumam estas paragens.

Pois é, para além de Nusa Dua, Bali tem também Kuta Legian, o resultado da semente lançada pelo casal norte-americano Koke. Uma Kuta que seria de facto um paraíso nos idos anos 30 e, não o duvido, o seria ainda nos anos 60, mas que certamente deixou de o ser nas últimas duas décadas. Assim, é errado e injusto culpar as bombas pela perda do paraíso e da inocência. Tudo o que as bombas provocaram foi a morte de toda aquela gente, o que já é muito. Os exagerados títulos registados na imprensa e nos ecrãs televisivos é a prova acabada de que os Meios de Comunicação Social frequentemente referem aquilo que não sabem.

 

A OESTE DO PARAÍSO

Um dos atractivos desta ilha é a sua facilidade de acesso. Muitas são as pessoas para quem a Indonésia é sinónimo de Bali. Não admira o actual ponto de saturação dos seus recursos naturais.

Dizem as estatísticas que só em 1997 voaram directamente para a ilha um milhão e 240 mil visitantes estrangeiros, isto para além dos inúmeros outros que aqui chegaram a partir das restantes ilhas do arquipélago – um acréscimo de mais de 7000 por cento em relação a 1969. Cerca de 22 por cento desses turistas são provenientes da Austrália e vinte por cento do Japão. Muita gente para um território de pouco mais de 5.600 quilómetros quadrados, com uma extensão de 140 quilómetros Este-Oeste, por oitenta quilómetros, Norte-Sul. Esta dissemetria provocou estragos irreparáveis no Meio Ambiente. Primeiro, devido à explosão da construção civil, sobretudo no Sul. Férteis terrenos agrícolas deram lugar a hotéis e a piscinas. No processo muita da flora local foi destruída, o que provocou a erosão do solo. Os “greens” de golfe também fizeram das suas.

Mais evidente ainda é a escassez de água. Cada hotel de cinco estrelas utiliza diariamente 570 litros de água por dia por hóspede, seja aquela que brota dos orifícios dos chuveiros, a que vai para a limpeza, a que enche a piscina ou a que rega os bonitos e bem cuidados jardins. O precioso líquido é captado nas montanhas do interior e muitas vezes retirado aos canais que alimentam os arrozais, base da economia local. No complexo de Nusa Dua, por exemplo, os poços das aldeias vizinhas secaram para satisfazerem o imenso consumo dos hotéis. Por seu turno, os baixos preços no aluguer de carros e motorizadas deu origem a um tráfego aterrador nas ruas bem asfaltadas mas exíguas, causando poluição sonora e do ar. A quantidade lixo não biodegradável produzido não é visível no imediato, mas sabe-se que não é devidamente tratado, acabando numa lixeira a céu aberto ou diluído no fumo pestilento e tóxico de uma fogueira remediadora.

A juntar a esta sobre-utilização em terra, temos o desgaste no mar. A continuada e abundante prática de surf, mergulho e “snorkeling” prejudicam o coral e a vida marinha.

A cumear tudo isto temos o impacto que a chegada em massa de estrangeiros provocou junto da população local de tradição rural. Com um aumento da inflação e das oportunidades de negócio, os habitantes mais empreendedores marcaram desde logo o seu lugar, formando deste modo uma pequena classe média e até alta. Em contrapartida, muitos camponeses viraram vendedores de rua, massagistas e taxistas. Obrigados a isso porque as sua terras foram expropriadas em nome dos grandes projectos turísticos. Hoje, muitos dos alimentos que se consomem na ilha têm de ser importados porque há agora bastante menos mão de obra disponível para o cultivo.

Mas há também boas notícias. Em questões de estética, arquitectural ou na organização do espaço, o bom gosto está instalado em Bali. Turistas interessados nos aspectos culturais ajudam a preservar a identidade única da ilha. Dança, arte e música persistem, nem que seja apenas para satisfazer as necessidades da indústria turística. Alguns empreendimentos deste sector canalizam parte dos seus lucros para bem da comunidade local e para projectos ambientais. Um naco substancial do oeste de Bali foi transformado em Parque Nacional, pondo deste modo um travão à urbanização desenfreada. Também o problema da droga e da prostituição é diminuto, sobretudo se o compararmos com a dimensão que tem em países como as Filipinas e a Tailândia. A taxa de crime contra estrangeiros é quase inexistente, embora sejam imensas as tentações. Apesar de tudo, os balinenses mantêm entre si, bem preservadas, fortes ligações sociais, culturais e religiosas.

 

TEMPO DE MARÉ BAIXA

Fim de tarde. Praia de Kuta. Queixava-se uma vendedeira que agora «no tourists» e que «look, now only you sitting in the beach», tudo por causa do «terrorism». Razão suficiente, assim pensa ela, para que lhe compre uma bracelete. Também às aranhas parece um desses rapazes de praia que rondam as turistas, sós de preferência, mas se estiverem acompanhadas, por marido, irmão, não é isso que os impede de tentar a sorte, em busca de uns dias com tudo pago e sexo à borla. São conhecidos como “Kuta cowboys”, “gigolôs” de trazer por casa que têm sucesso sobretudo junto das ocidentais que frequentemente encontram aqui marido e de japonesas que aos trinta anos são consideradas velhas no seu país e aos dezoito têm aqui o sonho exótico com centros comerciais ao alcance de dois passos. A ladainha é sempre a mesma «hoje tem muita sorte, vai poder assistir a um pôr-do-sol pois há já muitos dias que isso não acontece devido à chuva». Nada melhor do que conversa de pôr-do-sol para o engate. E o pôr-do-sol de Kuta, dizem os manuais de turista acéfalo, é magnífico. Qual magnífico, qual carapuça!, quem o diz provavelmente nunca assistiu a um pôr-do-sol na costa portuguesa. Quanto à praia, ainda segundo os guias de viagem “uma das razões para visitar Bali”, mesmo ali onde rebentam as ondas, mais parece um repositório de plásticos vários. Azar. Devo ter apanhado com um daqueles dias em que as descargas dos esgotos dos milhentes restaurantes, lojas de artigos de surf, pensões e hotéis vão direitinhos ao mar. Certo é que nunca vi uma praia tão suja em toda minha vida. A água é castanha e nela boia todo o tipo de imundice. Paraíso? Perdido há quanto tempo?

Já de si pouco satisfeitos com algumas mesquitas construídas nos últimos anos por migrantes de Java, os balinenses, hinduístas de crença, devem estar fulos com os seus concidadãos muçulmanos. Estranho eu que tenham estranhado muitos analistas políticos a escolha de Bali como alvo para um atentado. Habitado quase na totalidade por hindus e por ocidentais, sobretudo australianos, Bali era de facto o local ideal na Indonésia para a matança, já que ao fazê-lo os fundamentalistas corriam poucos riscos de vitimar muçulmanos, o que poderia ser contraproducente aos seus objectivos. Quanto às repercussões na economia da ilha, certamente que os balinenses estavam mal habituados. Se a quantidade de estrangeiros que por aqui continua é considerada baixa, nem quero saber como isto era antes das bombas explodirem no Sari Club da rua Jalan Legian. Certo é que, apesar de tudo, os preços não baixaram e o número de turistas continua elevado. Demasiado elevado para o meu gosto.

Joaquim Magalhães de Castro

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