Bengala e o Reino do Dragão – 54

A ilha dos tubarões

No local onde buscaram refúgio os fugitivos de Hugli, a ilha de Saugar (Sagar), todos os anos se realizava uma festividade hindu no decurso da qual os mais devotos, num gesto extremo de sacrifício aos seus sedentos deuses, se lançavam aos tubarões para que estes os devorassem. Este género de práticas vem retratado várias vezes nas páginas da “Peregrinação” de Fernão Mendes Pinto. Nessa ilha onde ninguém ousava viver com medo das incursões dos levantados portugueses de Dianga encontrou porto seguro a gente de Hugli. Abundava água de boa qualidade e era grande a quantidade de árvores de fruto. Uns quantos templos, visitados uma vez por ano pelos peregrinos, apresentavam-se como as únicas construções visíveis e em termos estratégicos o sítio rondava a excelência – não o podia atacar exército algum vindo por terra. Do ponto de vista comercial sobravam vantagens: estava Saugar a curta distância da aldeia de Hijli, frente à qual naufragara o navio onde viajava frei Sebastião Manrique, a caminho de Hugli.

Pesando bem todas as prerrogativas, o capitão Manuel de Azevedo decidiu transformar o templo principal em fortaleza, e com esse objectivo foram postos a trabalhar os escravos. Encontrada estava a nova “terra prometida”: nela se poderiam acoitar; nela continuariam a mercadejar… Havia, porém, um pequeno senão. É verdade que Saugar estava a 250 milhas a oeste de Dianga e, por conseguinte, fora dos domínios de Thiri-thu-dhamma, rei de Arracão, contudo, e tendo em conta as incursões arracanesas cada vez mais ousadas e o alcance geográfico mais alongado da sua frota marítima, liderada pelos mercenários portugueses de Dianga, a ilha não tardaria a cair em sua posse. A prudência aconselhava que se notificasse Thiri-thu-dhamma – prestando-lhe desse modo disfarçada mas conveniente vassalagem – de modo a não sofrer desagradáveis surpresas no futuro. Uma vez mais recairia nos ombros de João Cabral a espinhosa tarefa diplomática. Estava decidido: devia o padre ir pedir autorização ao rei de Arracão para que todos pudessem continuar a viver em Saugar e, quiçá, transformá-la numa nova Sandwip.

Só que entretanto a notícia do ataque mogol a Hugli tinha chegado aos ouvidos de Thiri-thu-dhamma. E como ele pretendia estabelecer amistosas relações com as autoridades portugueses de Goa, depressa vislumbrou um modo de estas ficarem em dívida de gratidão para com ele. Mais do que ninguém, e acima de tudo, o monarca arracanês queria expulsar os mogóis de Bengala, se possível com a ajuda dos artilheiros e da artilharia de Goa. Ora, semelhante medida não só lhe granjearia fama e respeito na região, como evitaria o previsível ataque aos seus domínios do norte, nomeadamente à cidade costeira de Chatigão. A libertação da cidade de Hugli, a destruição da frota e dispersão do exército mogol (apanhado de surpresa pela rectaguarda), abriria caminho para um futuro ataque a Daca, o coração do poder mogol em Bengala. Sem dar conhecimento a ninguém, Thiri-thu-dhamma tratou de enviar os seus navios estacionados em Dianga em socorro dos portugueses de Hugli. Porém, condições climatéricas adversas impediram que cumprissem a sua missão, pois quando chegaram a Hugli já a cidade tinha sido tomada e saqueada. Iriam ainda a tempo de interceptar as embarcações mogóis pejadas de despojos e a caminho de Daca. Afundaram-nas e recuperaram o espólio. Depois, informados da presença dos sobreviventes de Hugli em Saugar, imediatamente se dirigiram para lá.

Preparava-se João Cabral para partir quando as galés arracanesas ancoraram ao largo da “ilha dos tubarões”. Eram 27 ao todo, “muito rápidas e preparadas para a guerra”, como escrevia o jesuíta, concluindo de seguida: “uma só delas teria bastado para nos dar a vitória”. A comandar os homiziados de Dianga estava Manuel Palmeiro, que fez questão de informar o comandante Manuel de Azevedo que estava a ser preparada uma frota de trezentos navios tendo em vista um ataque em grande escala a Daca, para assim vingar a afronta mogol. O plano, porém, não singrou e o desejo de conquista adiado ficou para quando pudesse ser reunida maior força militar.

Entretanto, com a monção a terminar, aprontava-se João Cabral para partir para Mrauk-U, capital do reino de Arracão, com instruções dadas, um assistente e uma galera. Cabral fez uma paragem em Dianga (onde Manrique se encontrava embora não haja registo dos dois se terem visto) onde se encontrou com outro jesuíta, o padre António Farinha, com quem, após uma semana, partiria para Mrauk-U. Chegariam os padres a esta cidade após quatro dias de viagem em mar alto. Cabral descreve a recepção do monarca arracanês desta forma: “Tiri Tu-Dama recebeu-nos com manifestações de tristeza pela queda de Uglim e de alegria pela nossa chegada, que ele e o seu povo ardentemente desejavam”.

Apesar de João Cabral não ser um enviado oficial de Goa, ou de Hugli, por assim dizer, partes integrantes da Ásia Portuguesa, o rei arracanês confidenciou-lhe a sua intenção de expulsar os mogóis da região de Bengala, levando os seus exércitos até Cooch Behar, trezentas milhas a leste da fronteira arracanesa de Chatigão. Para atingir esse seu objectivo pretendia estabelecer um aliança com o vice-rei de Goa, o qual, após o ataque mogol a Hugli, estaria certamente com vontade de retaliar quanto antes. Esperava ainda que João Cabral, na sua viagem de regresso, tudo fizesse para que a desejada aliança luso-arracanesa se concretizasse. Entretanto, os portugueses reforçariam o sistema defensivo da ilha de Saugar, que futuramente serviria de conveniente base de apoio à frota arracanesa.

Joaquim Magalhães de Castro

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *