O relato de Cabral
A viagem ao Butão foi também documentada por João Cabral. Ou melhor dizendo, parte dessa viagem, pois a missiva enviada a Roma em 1628 por esse jesuíta abordava sobretudo a estada dos dois padres portugueses no Utsang (Tibete Central) e a fundação aí (ou tentativa disso) de uma missão católica. Como afirma logo no início, “nas cartas de Outubro passado escrevemos a Vossa Reverência o sucesso da nossa missão até à chegada e estada com o Droma Raja ou Lama Rupa (Shabdrung)”, Cabral referia-se à “Relação” de Cacela, escrita no ano anterior, a 4 de Outubro de 1617. Naquela que ele próprio redigiu dá-nos “conta da mudança que fizemos para o Reino de Utsang, no qual já nas outras fazíamos referência”. No parágrafo seguinte, Cabral explica a razão da partida – “resolvermo-nos a fazer esta mudança porque achamos que todos os favores de Lama Rupa eram traças para nos impedir do nosso intento, movido pelo zelo da sua falsa seita” – informando-nos depois acerca de quem os ajudara a partir: um lama leal ao rei de Xigatsé, designado por Estêvão Cacela como Demba Cemba. Enfim, esse monge era uma espécie de espião que prometera ajuda a Cacela quando fora mostrar ao padre português o terreno destinado à construção da igreja prometida por Shabdrung. Como esclarece Cabral, “era este lama, de quem o padre se valeu, alçado com o rei de Utsang, e, por esta causa, sabendo do seu intento sem reparar em nada o ajudou, ou por melhor dizer, o aviou, dando-lhe gente de guarda, mantimentos, cavalo e todo o mais necessário para poder chegar a Xigatsé, corte do Rei”.
Garante Cabral que cumpriu a jornada em vinte dias e que foi muito bem recebido. Demba Cemba que logo mandou expedir uma carta de agradecimento para ser entregada confidencialmente ao lama “espião”, e ainda uma outra missiva destinada a Shabdrung aconselhando-o a que deixasse Cabral ficar alojado na casa do primeiro – “me pusesse a mim e a todo o fato e casa do lama seu inimigo” – para que também ele o pudesse ajudar a partir para o Tibete Central. O que, de facto, viria a acontecer. Mas não sem o profundo desagrado de Shabdrung, que, esgotados todos os meios de persuasão, sabia que não podia reter Cabral eternamente. Escreve este: “Ficou o Lama Rupa sobremaneira enfadado e se declarou por inimigo nosso, e, por mais que com razões o procurei abrandar, tudo foi baldado”.
Afirma Cabral na sua carta intitulada “Relação da Missão do Reino de Uçangue”, cabeça dos do Potente que, desde a sua chegada, o rei do Tibete Central os tratou com grande consideração, atitude que não se modificaria com as notícias vindas do Butão denegrindo a imagem dos religiosos. Diz-nos o português que partiu a 18 de Dezembro do Butão e que teria atingido Utsang a 20 de Janeiro, fazendo algumas detenças no caminho enquanto não chegava “às terras do Rei”. Após a sua chegada, logo pela manhã, o monarca tibetano mandou-o chamar (a ele e a Cacela, que já lá se encontrava há uns meses) “mostrando de novo muita alegria da nossa vinda a seus Reinos”. No dia seguinte, explicar-lhe-iam os portugueses os motivos que os tinham levado a empreender tão arrojada jornada. Ouviu-os o monarca com muita atenção e gosto e encorajou-os a que se empenhassem no estudo da língua local, “porque gostaria de falar mais vezes naquelas matérias”. Essa atitude repetir-se-ia e foi o principal lama do mosteiro de Xigatsé encarregado, por ordem superior, de redigir um documento onde se afirmava “que a nossa Santa Lei é a melhor de todas, e que é bem que todos aprendam para a salvação de suas almas”. É claro que esta é uma interpretação muito subjectiva de Cabral. Mandou ainda o soberano tibetano dar-lhes boas casas em local de excelência provendo-os “de alfaias e moços para o serviço”, tudo com muita generosidade. A Cabral e Cacela foi-lhes dada “a ração quotidiana que se dá a toda a gente da fortaleza na despensa do Rei e afora esta outra de cada mês que é só dos capitães”, o que não só bastava para o seu sustento como lhes permitia praticar a caridade através da oferta de esmolas. Demba Cemba, inclusive, deputou um pajem para que nada lhes faltasse. Também lhes dava a honra de os mandar chamar quase todos os dias e de lhes ensinar a língua. Cabral realça esse privilégio, que não era para todos: “A nossa entrada tão franca muito falada dentre os seus, porque este Rei não anda tão facilmente, nem ainda a gente principal”.
Contudo, achavam-se na corte de Xigatsé dois lamas, “criados de Shabdrung”, que, com o objectivo de impedir a instalação dos jesuítas na corte vizinha, procuraram falar pessoalmente ao Rei e, “não sendo admitidos, o fizeram por via de oficiais”. Também trataram de atiçar todos os muitos lamas da cidade, “que são sem número”, contra Cacela e Cabral, “dizendo que éramos padres mandados só a destruir os seus pagodes, gente má, destruidora e blasfemadora de sua lei”. Felizmente não se encontravam nessa altura na corte os lamas principais, desses “que falam com o Rei”, que após o calunioso boato se mostrou “menos alvoroçado da nossa vinda, não no tratamento, que sempre foi o mesmo, mas na graça e afabilidade, em que parece, (se não for nossa imaginação) diminuiu alguma coisa, e é para dar graças ao Nosso Senhor não causar isto maior mudança, suposto o Rei nos não conhecer e se temer muito das feitiçarias dos lamas”.
Joaquim Magalhães de Castro