Bengala e o Reino do Dragão – 35

Diálogos teológicos

Durante a nossa curta visita a Chagri tenho a oportunidade de compartilhar com os guelões locais – para seu deleite, devo dizê-lo – a extraordinária aventura de Estêvão Cacela e João Cabral. E também eles me fornecem preciosos dados sobre a vida e obra do seu líder espiritual e temporal, anfitrião dos padres portugueses. Apontam, por exemplo, a data do seu nascimento, 1594, informando ainda que Shabdrung, com a idade de 23 anos, «no Ano do Dragão de Fogo», juntar-se-á às hostes do lama Hoptshopa de Gyon e com eles viajará até ao Butão. Aos 27 anos, «que é o Ano do Macaco de Ferro», após a conclusão da pirâmide funerária de prata contendo as relíquias do pai, estabelecerá então o seu próprio corpo monástico «que contava inicialmente com trinta monges». Esse seria o começo da ordem do Palden Drukpa no País. A título de curiosidade, lembre-se que o interior da mencionada pirâmide aloja a estátua de Tenpai Nyima, manufacturada pelo próprio Shabdrung. Reza a lenda que essa estátua a uma determinada altura terá, miraculosamente, falado ao rei-monge. Perto dali, na capela de Mahakala, guardam-se cuidadosamente as mãos e o coração de Gula, comandante do exército tibetano, assim como os corações dos seus homens oferecidos a Shabdrung, ainda frescos no rescaldo de uma vitoriosa batalha. Para celebrar a feliz ocasião, Shabdrung introduzirá a dança de máscara de Mahakala, ainda hoje presente em muitas festividades. Também vários pertences do monarca são mantidos no mosteiro e informam-me os monges que no decorrer do seu retiro espiritual Shabdrung ter-se-á alimentado apenas com «sumo de essência de flores».

Foi no mosteiro de Chagri que Estêvão Cacela redigiu a “Relação”, que enviaria aos seus superiores em Roma, tendo logo chegado à conclusão (ao contrário de António de Andrade, fundador da missão do Tibete Ocidental) que estava perante pessoas de uma outra religião. O seu depoimento não podia ser mais claro: “(…) dizem primeiramente que nunca foram cristãos nem acham em seus livros que seus antepassados em todos este Potente conhecessem a Cristo Nosso Senhor e tivessem sua lei”. E não é que aquelas gentes fossem gentias, pois “antes se riem e zombam das coisas da gentilidade, como de adorar animais e abominam matar gado a pagodes e outras cerimónias dos gentios”.

Na verdade, tudo leva a crer que Estêvão Cacela e João Cabral tinham consciência de estarem perante fiéis de um culto que até então lhes era desconhecido. Certamente lhes terá agradado a animosidade manifestada pelos locais em relação aos seguidores de Maomé, pois, segundo nos dá conta Cacela, os butaneses “dos mouros dizem muito mal, e é nome que chamam a quem querem chamar homem muito mau”. Algo tinham em comum os habitantes daquela região dos Himalaias com os portugueses: definiam-se como monoteístas, pois “dizem que têm um só Deus, e dele têm imagens muito bem feitas”. Aliás, uma dessa imagens ser-lhe-ia mostrada pelo próprio Shabdrung, como recorda Cacela: “Uma nos mostrou o rei muito composta, modesta e autorizada, de metal dourado, que tinha entre as suas mãos uma vasilha pequena de água, e disse-nos que aquela água era significação de como Deus lavava as almas dos pecados”.

Certa ocasião, Shabdrung exibiu uma mandala; no caso – e como bem destrinça o religioso – impressa numa thangka, provavelmente muito semelhante a todas aquelas tão comuns nas paredes exteriores e interiores dos mosteiros. Eis a descrição do jesuíta: “Mostrando-nos também outro painel em que estavam pintados os Céus, e no meio deles uma casa quadrada em que dizia que morava Deus, posto que, conforme seu ordinário falar, conhecem a Deus por imenso e que, como tal, está em toda a parte”.

Cacela salienta ainda um ponto importante: o aspecto não institucional do Budismo, que para muitos é considerado mais uma filosofia ou um código de bem viver do que uma religião propriamente dita. Escreve o jesuíta: “(…) tendo-nos o rei dito primo que Chescamoni não era Deus e que os lamas letrados não o adoravam, mas só a gente comum e que não sabia”.

Disserta Cacela ainda sobre a Santa Cruz e a Santíssima Trindade, encontrando muitas semelhanças entre as duas religiões, o que certamente terá dado novo alento, a ele e ao seu companheiro de jornada. O mesmo se passara alguns anos antes com António de Andrade, pioneiro entre os pioneiros nestas paragens. Na “Relação”, a determinada altura podemos ler: “Bem se vê nestas coisas ter aqui chegado de algum modo a luz do Santo Evangelho, e outras cerimónias e bênçãos de que usam mostram muita semelhança com as coisas da cristandade”.

O pioneirismo dos padres não ficou por aí. Estêvão Cacela é o primeiro ocidental a associar o nome Sakyamuni (Chescamoni, nas palavras do português) a Gautama Buda e a indicar-nos o local onde este terá nascido, embora tenha mencionado a localização geográfica e não o nome exacto, que é Lumbini, no actual Nepal. Esclarece o missionário: “Acerca do filho de Deus que dizem nasceu, afirmam ser o seu Chescamoni, que é um pagode muito famoso nestas paragens, e fica daqui a doze dias de caminho, e dizem que nasceu há dois mil anos e que andou doze meses no ventre da mãe”.

Joaquim Magalhães de Castro

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