A arte e o intelecto do monarca
Os eremitérios espalhados pelos montes em redor do mosteiro de Chagri continuam hoje a ser ocupados por eremitas que ali permanecem vários meses em recatado silêncio e sem qualquer contacto com os seus semelhantes, nem mesmo aqueles que os abastecem à distância com alimentos, isto no caso dos ditos ascetas não estarem a cumprir estritos períodos de total jejum. Nos seus escritos Estêvão Cacela refere os objectos manufacturados por Shabdrung durante esse retiro espiritual. Entre eles “uma imagem de vulto de Deus em sândalo branco, pequena mas excelentemente feita” e algumas pinturas que ainda hoje são motivo de reverência por parte dos butaneses. Pelos vistos, era tal o seu pendor artístico que, ao ver a imagem do arcanjo São Gabriel levada pelos padres, Shabdrung mostrou vontade de fazer uma réplica. Garante-nos Cacela que logo ele pôs mãos à obra “e o foi continuando muito bem, posto que por muitas ocupações o não tem ainda acabado”. Seria interessante saber do paradeiro dessa pintura…
Ainda a respeito dos dotes artísticos do rei butanês, na qualidade de pintor e escultor, diz Cacela que “toda a sua arte e curiosidade, emprega em fazer imagens de seu pai e orná-las muito bem, e fazer-lhe festas, e esta tem em uma casa que aqui fez de sua oração, na qual só está esta imagem de vulto em um sepulcro bom e formoso de prata”. A “casa” mencionada pelo jesuíta é, na verdade, o templo que guarda que mencionámos na semana passada, local principal de culto em todo o complexo monástico.
Cacela fornece-nos ainda a primeira e, quiçá, única descrição física do histórico personagem. Diz-nos ele ser a barba de Shabdrung tão comprida que “alguns cabelos dela lhe chegam à cintura” e, por essa razão, os enrolava num pano de seda e só em ocasiões solenes a desprendia, como aconteceu aquando a visita dos jesuítas. Acrescenta o guia Sangay, a propósito, este pormenor delicioso: “os padres portugueses chegaram a medir a barbicha de Shabdrung”. Quanto à melena, “era de quase dois côvados de comprimento” e dela tinha o monarca o maior orgulho. Aliás, lembra Cacela que todos os butaneses prezavam o cabelo comprido, pois “o têm por insígnia de grandeza”.
Hoje, e ao contrário do que acontece nas diferentes partes do vasto Tibete, sobretudo entre os khampas da região do Kham, raríssimos são os butaneses com cabelo comprido. Shabdrung terá confessado aos padres que tencionava cortar o seu e recolher-se num mosteiro logo que tivesse filhos a quem deixar o trono. De facto, o rei butanês viria a retirar-se da vida política pouco tempo depois da partida dos padres, alojando-se no mosteiro de Punakha onde permaneceria até morrer, em 1651. A notícia do seu falecimento seria mantida em segredo durante cerca de cinquenta anos, enquanto as autoridades procuravam a reencarnação que lhe sucedesse, e, principalmente, porque temiam que o País voltasse a cair no caos.
Cacela não se esquece de salientar o gabarito intelectual do soberano, “grande nome de letrado”, que se fazia rodear pelos melhores monges. Da região e de reinos vizinhos, como o de Tsaparang e também o de Ladaque, que sempre foi seu aliado nas batalhas contra o rei de U-tsang, Tibete Central. Tratando-se de um monarca iluminado, não admira o seu interesse em manter no reino tão distintos estrangeiros. Cedo se apercebeu serem eles gente de grande sabedoria. Na sua itinerância Shabdrung fazia-se acompanhar “com a escola dos seus lamas que sempre traz consigo, e tem mais de cento com notável exercício de aprender a fazer suas cerimónias”.
Entre os monges havia uma casta especial – “os guelões” ou seja da seita Gelugpa – que sempre o acompanhavam. Não casavam e alimentavam-se frugalmente, não podendo comer depois do meio-dia. Estavam impedidos de comer arroz, carne, peixe e “nem bebem vinho nunca”. Nisso se distinguiam dos restantes religiosos cujas regras eram bem menos rígidas. Informa Cacela que os guelões se mantinham em recolhimento no mosteiro, onde comiam e dormiam, saindo apenas duas vezes ao dia, pela manhã e à tarde, lamentando o nosso jesuíta que estivessem sempre “tão ocupados nos erros que lhes ensinam”. Também nos descreve os lamas como gente que não é portadora de armas e que corta o cabelo da cabeça, embora alguns, poucos, deixassem crescer a barba. E, homem religioso que era, certamente não estranhou a vida disciplinada que levavam, gastando parte do dia com orações. Tarefa essa que se iniciava de madrugada: “de noite se levantam todos a um sinal que lhes dão e rezam como por espaço de meia hora e outra vez de madrugada, cantando a modo de clérigos em coro”, um hábito como acontece, afinal, entre os frades católicos, com as vésperas.
Ainda hoje os guelões habitam Chagri, embora não sejam tão rígidas as regras a que estão sujeitos. Numa placa à entrada da capela do “demónio subjugado” está o seguinte aviso: “respeitosamente se solicita aos estrangeiros sem a devida carta de autorização e aos butaneses sem o seu trajo tradicional que não entrem nesta capela”.
Joaquim Magalhães de Castro