O retiro de Shabdrung
Pelo depoimento prestado por Estêvão Cacela, depreende-se que os jesuítas viajaram com Shabdrung em diferentes partes do reino antes de ficarem definitivamente hospedados em Chagri. Lembra o padre Cacela que “nestas serras e noutras o acompanhamos dois meses até chegar a sua casa que está naquela serra onde teve o seu recolhimento sem ter consigo mais do que os seus lamas”. Como bem salienta o padre português, o palácio fora propositadamente erguido para dar guarida ao rei e a alguns dos seus monges apenas. Situava-se num local agreste e de difícil acesso pois “para fazer aí uma casa é necessário muita penedia e aplainar com muito trabalho algum espaço da serra, que é muito alcantilada”. Assim acoitado, Shabdrung defendia-se das agressões do adversário, senhor de um território “que lá fica daqui a oito dias de caminho, e é o maior do Potente que se chama Demba Cemba”. Ora, era precisamente esse o soberano que Estêvão Cacela e João Cabral procuravam contactar, embora não pudessem confiar o seu propósito ao rei do Butão.
De acordo com os anais lamaístas, o local fora visitado pela primeira vez pelo guru Rinpoche no século VIII e, cinco séculos depois, por Phajo Drugom Zhigpo, o lama tibetano responsável pela introdução da linhagem Drukpa no Butão. Em 1620, quando tinha 27 anos apenas, Shabdrung passaria três anos em estrito retiro em Chagri e ali residiria por vários períodos de tempo ao longo da sua vida, tendo sido aí inclusive que, em 1623, seria oficializada a primeira ordem monástica dos Drukpa. Situado a escassos quilómetros a norte de Thimphu, o convidativo lugar destaca-se pela sua serenidade e as magníficas vistas.
Na apertada e única estrada que liga Chagri à capital passam magotes de jovens estudantes de ambos os sexos. Avisa-nos Sangay que é dia de aniversário de Shabdrung. Feriado nacional, portanto. Não podíamos ter visitado o local em melhor ocasião! Quais peregrinos, como os demais visitantes, almoçamos em jeito de piquenique, sentados num prado verdejante no sopé da pequena mas muito solicitada colina. Uma vez mais denoto na comida butanesa algumas parecenças, no sabor e no aspecto, com os nossos refugados. É o caso do “jasha maru” (prato de frango). Importa realçar a extraordinária apetência dos butaneses para o picante. Em nenhuma das múltiplas ementas é dispensada a pimenta malagueta, presente em dose reforçada no popularíssimo “ema datshi”, iguaria composta por pimentos verdes regados com molho e que faz lembrar o “chilli con queso”. É, por assim dizer, o prato nacional do País. Este pendor para o picante deve-se certamente aos mercadores portugueses que de Bengala faziam chegar a esse domínios himalaicos novos e exóticos produtos.
O acesso ao trilho faz-se por uma antiga ponte coberta decorada com bandeiras oratórias que atravessa um rio de águas cristalinas e apressadas. Ao lado do caminho depara o peregrino com duas estruturas. À esquerda, uma grande roda de oração; à direita, as estátuas do guru Rinpoche, de Sakyamuni (o Buda histórico) e de Shabdrung. O íngreme caminho até ao mosteiro é interrompido uma única só vez, com uma stupa que serve também de local de descanso. Com sorte apreciará o viandante alguma das cabras montanhesas autóctones, a cabra goral, que parece não ter qualquer receio dos humanos. Ao longo da subida cruzamos com inúmeros peregrinos – famílias inteiras, velhos e novos, crianças muitas –, um constante vai-e-vem de gente nova e gente velha, alguns muito anciões mesmo, que descem e sobem o trilho abrigados por uma floresta de carvalhos de frondosas copas. Todos envergam as suas vestes tradicionais, sendo as mochilas e os guarda-chuvas, pois cai uma morrinha insistente, os únicos acessórios modernos ali presentes. Sangay acompanha-nos e vai fazendo o ponto da situação.
Na parte superior do mosteiro são vários os santuários dispostos a receber todos os que pretendem prestar tributo a Sakyamuni e aos vários outros bodhisattvas. São particularmente veneradas as cinzas do pai de Shabdrung, preservadas numa caixa de prata luxuosamente decorada. Dizem os textos antigos que foram para aqui transportadas do Tibete, no maior dos segredos.
Na fachada do mosteiro é bem visível um retrato do monge-guerreiro, e o guia Sangay logo aponta para um minúsculo eremitério encavalitado num penedo. Foi ali que o líder butanês meditou durante três anos sem ver ou ser visto por ninguém. Era local de refúgio e meditação. A comida chegava-lhe num cesto transportado por duas cordas que ligavam a sua pequena cabana a outras duas em abaixo. Este período de reflexão consta nos textos históricos butaneses.
Shabdrung, mais estimado do que temido, era um soberano bondoso e de espírito magnânimo, capaz de perdoar aos seus inimigos. No fundo, uma pessoa bastante espiritual, como realça Estêvão Cacela: “este rei é também muito celebrado pela muita abstinência que faz, não comendo nunca arroz, nem carne, nem peixe, sustentando-se de leite e frutas, e também pelo recolhimento que guardou os três anos passados antes de aqui chegarmos, metendo-se em uma casinha que fez muito pequena no meio da serra sobre grande penedia”.
Joaquim Magalhães de Castro