Bengala e o Reino do Dragão – 25

O papel civilizador de Shabdrung

Como já aqui foi dito, Shabdrung Rinpoche chega ao Butão, em 1616, na condição de refugiado político do Tibete e, no espaço de uma década, logra unificar toda a região oeste. Com ele chega a lei e a ordem a esse remoto latíbulo dos Himalaias. Como bem especifica o biógrafo Tsang Khenchen, “é a partir de então reprimido todo o tipo de roubo, banditismo e outros comportamentos maliciosos”, incluindo o desrespeito, a falta de compaixão e a ingratidão. Assim, “o país tornou-se pacífico e próspero”.

O modelo político adoptado por Shabdrung associava a religião ao Estado. Faltava, porém, cumprir uma tarefa: comunicar com o povo.

Senhor de um vasto património (mosteiros e propriedades) acumulado desde a época do seu antepassado Tsangpa Gyare, o monarca promulga um código de comportamento para os monges que o acompanhavam ou que com ele residiam – gente alfabetizada, portanto. Sabemos, graças à biografia redigida por Khenchen, que após o estabelecimento do seu governo Shabdrung recebe de todas as partes do reino presentes de agradecimento. Na época, contactavam-se os Estados vizinhos através de cartas oficiais transportadas por emissários a cavalo ou a pé. Existem várias referências a comunicações do género entre Shabdrung e governantes da Índia e do Tibete. Dentro de fronteiras, contudo, a comunicação escrita pessoal mostrava-se impraticável, já que eram analfabetos todos os cidadãos comuns. Num esforço para suprir essa falha, Shabdrung passa o seu tempo a mover-se de uma localidade para a outra, de um acampamento ao outro, falando com os seus súbditos após dar-lhes bênçãos e palestras sobre religião. Foi nesse contexto que Cabral e Cacela o conheceram, em 1627, tendo os portugueses viajado com rei-monge mais de dois meses antes de chegarem ao mosteiro de Cheri.

Esta forma de comunicação presencial era também muito limitada em termos geográficos. As deslocações de Shabdrung não foram além da parte ocidental do reino. Mensagens destinadas a outras partes do reino eram levadas pelos mais diversos tipos de legados.

Outra forma de comunicação pública muito comum eram as inscrições em postes de pedra ou esculpidas em paredes oratórias designadas mani dangrim, algumas delas muito anteriores à chegada de Shabdrung. Muito usuais nos reinos que compartilhavam o Tibete, encontravam-se associadas aos chortens (monumentos funerários em forma de pagode). Ainda no século passado havia no Butão um número surpreendente de mani dangrims de diversos feitios e tamanhos. Destinados a serem lidos por todos os transeuntes, eram normalmente alinhados junto aos caminhos, às vezes em lugares de difícil acesso, trilhos há muito esquecidos. Houvera uma pesquisa abrangente sobre o assunto, e muito se poderia revelar acerca da localização dos caminhos e estradas que antecederam o Butão moderno. É muito provável que a construção dessas estruturas com duplo carácter – social e religioso – fosse patrocinada por governantes locais. Contêm orações escritas exortando as pessoas a adoptarem comportamentos morais ou, no mínimo, a proferiram, sempre que possível, o mais simples e conhecidos de todos os mantras. Continuava-se assim o processo de “pacificação” e de implantação da lei e da ordem iniciado pelos primeiros monges viajantes e, numa fase posterior, com o patrocínio do Governo. Vemos nesses monumentos de pedra “o mais antigo veículo público escrito no Butão”, uma forma de comunicação directa entre os governantes e os cidadãos. Eis um exemplo: “Recite continuamente o mantra Om mani padme hum e dessa forma convoque a boa sorte, para si mesmo e para o planeta terra.”

Pelos vistos, esses princípios continuam a ser cultivados. Considerado um dos mais pobres países do planeta, o Butão optou por avaliar o seu estado de saúde recorrendo a uma política que aposta na felicidade das pessoas. Em contraponto ao PIB, avaliador da “prosperidade económica”, surgiu o FIB (Felicidade Interna Bruta), conceito instituído pelo quarto rei, Jigme Singye Wangchuck, em 1972. Foi a forma de este dizer ao mundo que para o seu povo “a felicidade está acima de qualquer tipo de crescimento económico”. Eivada do ideal budista, essa filosofia assenta na ideia de que a evolução benéfica da sociedade só é possível quando o desenvolvimento material e espiritual acontecem em simultâneo, completando-se e reforçando-se mutuamente. “A preservação dos valores culturais, a promoção do desenvolvimento sustentável, a conservação do meio ambiente e uma boa governação” são os quatro pilares da Felicidade Interna Bruta. Embora nem tudo seja um mar de rosas neste país – muito longe disso – a serenidade e bem-estar dos butaneses é uma realidade que ressalta à vista e certamente se deve à atitude reverencial ao rei, visto como figura paternal, unificadora da nação. Essa coisa do Felicidade Interna Bruta parece estar a dar resultado. As pessoas aparentam estar bem com a vida. Nada de sorrisos forçados.

Joaquim Magalhães de Castro

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