A conversa na biblioteca
Dada a especificidade da nossa visita, e após o pequeno-almoço que conta na ementa com o delicioso e nutritivo arroz vermelho, a opção para essa manhã só pode ser a Biblioteca Nacional, fundada em 1967 com o objectivo de “preservar e promover o rico património cultural e religioso do Butão”. De resto, em frente a esse edifício tradicional de quatro andares que mais parece o templo da torre central de um dzong, aguarda-nos Yonten Dargye, director do centro de pesquisa. A agência de viagens tivera previamente o cuidado de o contactar, solicitando os seus serviços. Verdade seja dita: antes de nos metermos em aventuras, não nos fica nada mal aprendermos o máximo que pudermos acerca da história local. O professor Dargye começa por nos dizer que o custo da construção do edifício foi «totalmente suportado pelo Governo Real do Butão, sem qualquer ajuda externa» e mostra-se orgulhoso dos documentos que estão à sua guarda, maioritariamente de teor religioso e referentes à seita Gelupka e ao animismo autóctone “bon”. Lamenta, contudo, e desde logo, não possuir a biblioteca qualquer imagem de Shabdrung, pela qual tanto ansiamos.
Estêvão Cacela foi a primeira e única pessoa a descrever o aspecto físico do monarca. Aliás, não fora ele e os butaneses teriam de idealizar uma qualquer figura para retratar “o pai material e espiritual da nação que a todos acolhe”. Além disso, sem o testemunho escrito do português, praticamente nada se saberia acerca das circunstâncias em que ocorreu a fundação desse pequeno reino budista (empreendida por Shabdrung Ngawang Namgyal), assim como o seu modus vivendus. Basta isso para aquilatar a enorme importância do contributo escrito de Estêvão Cacela.
Apesar da investigação já efectuada, o professor Dargye admite as muitas lacunas que continuam por preencher e parece desconhecer vários dos factos com que o confronto. Mostra-me a cópia de um documento com o selo real de Shabdrung isentando determinada família de Paro de pagar impostos – «o original está na Bodleian Library em Londres» – e diversos retratos dos primeiros reis da dinastia actual, os Wangchuk, assim como fotografias dos soldados do reino, de cenhos cerrados, empunhando escudos redondos e sabres curtos, certamente não muito diferentes daqueles que assaltaram o padre Cacela, e estantes inteiras com livros: simples folhas de papel artesanal manufacturado a partir da polpa da raiz do rijak, uma planta silvestre venenosa cujas propriedades desmotivam as muitas dezenas de categorias dos sempre indesejáveis insectos bibliófagos. São reunidas essas folhas em plaquetas de madeiras que servem de capas, enlaçadas por um pedaço de tecido.
«Se encarquilhar uma dessas folhas e a enfiar numa tina de água reparará que, depois de retirada, a folha volta o seu estado normal e a tinta não se desvanece», informa o académico.
Em absoluto contraste, e num escaparate envidraçado, exibe-se ao olhar do visitante um calhamaço com mais de sessenta quilos e o equivalente em papel à área de um campo de futebol. Contêm as suas páginas uma selecção de fotos a cores das diferentes partes do País. «Foram necessários quatro litros de tinta para o imprimir», nota Dargye. «É o maior livro do mundo, recorde do Guinness». Das 500 cópias impressas, «distribuídas em todos os continentes», o Butão guardou apenas três exemplares. Bem, neste domínio, e à semelhança do que acontece com a imbecil competição entre torres de betão que arrogantemente insistem em ferir o firmamento – caso contrário não teriam o nome de arranha-céus, não é verdade? – expectável será que um título desses seja reivindicado também por outras nações.
Mencionadas as “grandezas”, vamos ao que interessa. Ou seja: o compêndio de história que faz menção aos padres portugueses com base nas crónicas da época compiladas no “Lho’i chos ‘byung”, a história do Butão, completada em 1759 por Tenzin Choegyal (1700-1767), o décimo Jey Khenpo, também conhecido por Dharma Raja, título honorífico religioso tantas vezes mencionado por Cacela quando se referia ao rei do Tibete Central. Esta obra dá-nos a verdadeira imagem do caos social existente no Butão antes da chegada de Shabdrung Rinpoche e, com ele, o restabelecimento do primado da lei e da paz social. Esporádicos mas violentos episódios de guerra civil no planalto central do Tibete ao longo dos séculos XIII e XIV, agravados com recorrentes invasões das sedentas hordas mongóis, levariam os monges locais a demandar recônditos locais onde imperasse a paz e a tranquilidade, os ditos “reinos escondidos”, inflamadores da imaginação colectiva das gerações futuras. Porém, chegados ao sul, o cenário com que se depararam estava longe de ser idílico. Habitavam-no povos incivilizados, rudes e altamente agressivos. Como única arma de defesa, aos monges restava-lhes o Budismo, que à medida que ia sendo difundido mitigava os instintos mais bárbaros daquela gente. O assalto de que foram vítimas Cabral e Cacela é, não obstante, a prova privada de que os preceitos preconizados por essa religião estavam ainda longe de se refinar.
O famoso lama Lorepa chegou a região de Bumthang em 1248 e deparou com pessoas que eram – como ele próprio dizia – “autênticas bestas, selvagens e temperamentais; gente amiga de comer carne e fazer sacrifícios de animais”. Cem anos mais tarde, o monge tibetano Choeje Barawa, fugido da terra natal Utsang devastada por guerras civis, descreve o panorama nos seguintes versos de uma canção religiosa que o celebrizaria: “Os poderosos (famílias) são agora todos ladrões / Não há qualquer esperança para os partidários da paz e da felicidade / Prisão, espancamento, tortura! Oh, que mais acontecerá?”. Para além do proverbial “o peixe graúdo come o peixe miúdo”, informa que “homens raivosos pegaram em armas para se matarem uns aos outros” e que “para ir da parte de cima de uma aldeia à parte de baixo” era preciso levar escolta. Conclui o monge Barawa: “Os ricos roubaram os pobres dos seus escassos haveres e casas e forçaram-nos à servidão involuntária”.
Joaquim Magalhães de Castro