Basílica da Estrela em Lisboa

Um presépio nada iconoclasta

Neste tempo de Natal, vou tentar aproximar-me do mais famoso presépio de Machado de Castro que pode ser contemplado na Basílica da Estrela, em Lisboa. A razão é um novo livro de cabeceira publicado pela PAULUS Editora, em 2015, “Encarnação e Imagem. Uma abordagem histórico-teológica a partir dos três discursos em defesa das imagens sagradas de São João Damasceno”, de Isabel Maria Alçada Cardoso.

Esse presépio é um imenso povoado composto por 500 figuras. Hoje em dia, em Portugal, já não há aldeias com tanta gente a poder ver-se ao mesmo tempo, como naquele presépio. Ali tudo é divinamente humano e tudo humanamente divino.

Sendo um ensaio teológico sobre a Teologia da imagem, esta obra pode perfeitamente ser bem ilustrada por este presépio, tão singelo, do nosso espólio nacional. Estamos sensivelmente a um largo milénio de distância entre o Discurso em defesa das imagens sagradas de São João Damasceno e a representação pletórica deste presépio do barroco português. É muito fácil notar a intencionalidade daquele meio milhar de imagens: emocionar todos os que se dispõem “conviver” numa contemplação festiva. Este presépio, como os damacénicos ícones sagrados da Ortodoxia, serve para alimentar o nosso êxtase e para proporcionar ao nosso arrebatamento do sentido da vista a plasticidade das figuras, a assimetria dos espaços, a profusão das cenas e o cromatismo dos diversos elementos.

No tempo do nosso barroco e no de São João Damasceno existia o mesmo perigo: a iconoclastia. Depois do Concílio de Trento, os católicos procuraram impulsionar o dinamismo das expressões artísticas com a intenção de impressionar as massas populares, reagindo contra um movimento iconoclasta, impulsionado pelos protestantes e caracterizado pela austeridade e o despojamento ornamental com reflexos na arte e no culto.

A diferença mais flagrante das duas épocas está que, no presépio, as imagens são em terracota; mas os ícones defendidos por São João Damasceno são na sua maioria pinturas. Para unir Céu e Terra, Machado de Castro representa o “teatro do mundo”, ao passo que o Damasceno, de modo rápido e eficaz, de rompante logo nos imerge na “hieraticidade” sagrada própria de cada ícone. Mas em ambos os casos, os nossos olhos abrem-se pela cor e pela expressão das figurinhas e dos ícones; e, ao mesmo tempo, abrem-se os corações para contemplar a apoteose de um Deus feito menino. É pura Teologia da Encarnação, como pretendia São João Damasceno.

Enquanto memória e apelo, o presépio representa e “reactualiza” o acontecimento do “Verbo feito carne”, confiado ao carinho de uma mãe e de um pai, despertando nobres sentimentos no coração do homem simples.

A maravilha desta Natividade não está só naquilo que os olhos veem, mas na explosão de um hino à Vida. Portador de uma mensagem de alegria e de paz, o nascimento de Jesus convida a olhar para além da graciosidade das figuras, implantando na humanidade as sementes de um mundo novo.

São João Damasceno descobre e defende o dado bíblico original de «o homem feito à imagem e semelhança de Deus» (Gn 1,28). Dentro deste princípio, não pode dar importância, como fazem os fundamentalistas, a outra afirmação de que Moisés proibiu severamente aos israelitas de fazerem qualquer espécie de imagens. A constante tentação idolátrica do povo israelita era a justificação, como se comprova pela Sagrada Escritura (Ex 20,4; Dt 32,17; Sl 106,6-37; 1Cor 10,20).

Para o Novo Testamento, tal perigo passou. Pela sua Encarnação, Cristo é a verdadeira “imagem” de Deus para n’Ele reconhecermos o querer e o agir divinos. Nesta mesma linha, a tradição da Igreja passa facilmente também a representar os santos, junto com outras representações do Cristianismo. As imagens de Cristo, da Virgem, dos santos, da Cruz, etc., não são de modo nenhum idolatria, porque servem à perfeição como “espelhos” da presença de Deus e testemunhas indicadoras da Encarnação do Verbo Eterno.

D. MÁRIO SANTOS, SSP

In Síntese

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