Passagem para o Pacífico
Ártico e sinónimo de gelo. A região abrange partes de dois continentes e um oceano. Está gelada quase todo o ano, em quase todo o lado. Ou pelo menos era assim até há pouco tempo. O aquecimento global está a encarregar-se de mudar isso. Tal significa que, pela primeira vez na História, se poderá navegar com regularidade entre o Atlântico e o Pacífico através do Ártico. Não é para já mas pode mudar muita coisa.
Em 1845, dois navios da Marinha Real Britânica, sob o comando de Sir John Franklin, partiram em direcção ao oceano glacial ártico. O seu objectivo era encontrar a famosa, mas elusiva, passagem do Noroeste, que permitiria encurtar de forma dramática a viagem entre a Europa e a Ásia, entre o Atlântico e o Pacífico, através das águas geladas a norte do Canadá.
A expedição de Sir John tornou-se numa das mais famosas dos anais da exploração pelos piores motivos. O Erebus e o Terror ficaram presos no gelo e nenhum dos 134 tripulantes dos navios sobreviveu.
Houve, contudo, uma consequência positiva dessa tragédia. Uma das numerosas expedições enviadas para socorrer Franklin e os seus homens acabou por descobrir mesmo a passagem do Noroeste, em 1850. Contudo, Robert MacClure e os seus marinheiros logo descobriram que o gelo impedia que o percurso fosse inteiramente feito por via marítima. A passagem existia, mas era inútil para o efeito pretendido. Foi preciso esperar mais de cinquenta anos para que um outro explorador, o norueguês Roald Amundsen, conseguisse fazer o percurso completo por mar, mas então já era perfeitamente claro que isso só podia ser feito excepcionalmente.
Terminou deste modo (assim se pensava) uma ambição que já vinha desde pelo menos o final do Século XV: estabelecer uma nova, e muito mais curta, rota comercial entre a Europa e a Ásia. Recorde-se que, até à abertura dos canais do Suez (1869) e do Panamá (1914), só era possível fazer a ligação entre os dois continentes contornando os extremos sul de outros dois: a América (Cabo Horn) ou a África (Cabo da Boa Esperança).
Mas eis que a mão do homem alterou a situação de uma forma inesperada. Graças aos gases lançados para a atmosfera pelos automóveis, pelas fábricas e até pela agricultura e pela pecuária, entre muitas outras actividades humanas, a temperatura do planeta tem vindo a subir paulatinamente. Os dados mais recentes indicam que, no Ártico, os valores médios deverão subir três a cinco graus Celsius até meados deste século.
Como e fácil de calcular, isto significa muito menos gelo naquela região, e por menos tempo. Em consequência, a passagem do Noroeste (ou passagens, porque há sete rotas diferentes ) passou a estar completamente desimpedida com alguma frequência, o que tem permitido uma navegação muito mais frequente e fácil do que alguma vez se imaginou ser possível desde a sua descoberta. Nos primeiros cem anos de viagens, não chegaram a ser concluídas com sucesso cem; nos quinze anos seguintes (2004-2018) houve quase duzentas. O ano de 2017 foi o mais movimentado de sempre naquelas paragens, com 32 navios a fazer o percurso – e isto inclui um número de cargueiros e paquetes de turismo de dimensões consideráveis.
Este cenário estende-se ao outro lado do Ártico, porque também há uma passagem do Nordeste que bordeja o território russo. Em 2017, a Maersk, a maior empresa de transporte marítimo do mundo, enviou um dos seus navios através dessa rota. Assim, a viagem entre Vladivostoque, na costa russa do Pacífico, e Helsínquia, na Finlândia, ficou reduzida em um terço da duração e da distância habitual.
Mas esta não e a única vantagem do degelo ártico. É que além de permitir que a região seja atravessada com mais facilidade, permite também que seja explorada economicamente com investimentos mais baixos. E o que há para explorar num sítio tão inóspito?
A resposta é: muito! Só em petróleo, estima-se que o Ártico tenha cerca de seis por cento das reservas mundiais; no caso do gás natural, a percentagem sobe para quase 25 por cento, e isto sem contar com o ferro, o zinco, o chumbo, o ouro, os diamantes e incontáveis outros minerais, alguns dos quais muito raros e preciosos.
PORTUGAL PODE GANHAR
Não admira que o Governo russo tenha sido célere a (re)instalar bases militares na região e que o Canadá reclame soberania sobre a passagem do Noroeste, contra a opinião dos Estados Unidos e da União Europeia. Fala-se cada vez mais de uma “Corrida ao Ártico”, em que participam países como Canadá, Estados Unidos, Rússia, Noruega e Dinamarca, que tem lá territórios, e também Estados como a China e a Índia, que não querem ficar de fora da partilha de recursos.
Por estranho que pareça, Portugal também pode ter muito a ganhar com estas mudanças no Ártico – e bem precisa, porque o aquecimento global que as causa também trará graves prejuízos ao País, como os incêndios florestais já demonstram.
Se olharmos para um mapa, rapidamente percebemos que, face à Europa, Portugal é um país periférico, mas em relação ao mundo atlântico está no centro, especialmente se tivermos em consideração os arquipélagos dos Açores e da Madeira. Por estarmos “debruçados sobre o Atlântico”, temos a nosso cargo uma grande parte desse oceano. Portugal tem a terceira maior Zona Económica Exclusiva (ZEE) da União Europeia e 11ª do mundo; se a sua pretensão de estender essa zona for aceite pelas Nações Unidas, ficaremos com uma área total quarenta vezes maior do que o território continental e sensivelmente igual à da Índia.
E onde está situada essa ZEE? Precisamente no acesso sul ao Ártico. Se ele se tornar numa alternativa viável para o tráfego marítimo regular – e serão precisas décadas para que haja certezas sobre isso –, o Atlântico Norte terá um papel ainda mais importante na economia mundial do que tem hoje. Portugal, por via da posição estratégica dos Açores no centro desse espaço e do seu porto de águas profundas em Sines, pode assumir uma posição de relevo no desenvolvimento de novos circuitos comerciais, potenciando assim a sua própria economia, especialmente se tivermos em conta o alargamento do canal do Panamá.
Para que isso aconteça é indispensável a ligação de Sines ao resto da Europa por via férrea de alta velocidade, para que as mercadorias que ali sejam desembarcadas possam chegar mais depressa aos seus destinos do que as que sejam deixadas em portos concorrentes, como Roterdão e Antuérpia.
Além disso, há que dotar os Açores com as infraestruturas necessárias para que possam assumir o papel de ponto de apoio e controlo (económico, militar e científico) para a navegação com passagem pelo Ártico.
Contudo, nada disso será possível sem política, diplomacia e uma visão estratégica. O parceiro que pode encaixar todas as peças do puzzle está mais do que identificado: os Estados Unidos da América.
ROLANDO SANTOS
Família Cristã