O Desafio de Guterres
António Guterres, ex-Primeiro-Ministro de Portugal, foi escolhido pela Assembleia-Geral da ONU para o cargo de secretário-geral da organização. A partir de 1 de Janeiro de 2017, o antigo alto-comissário das Nações Unidas para os Refugiados enfrentará uma das tarefas mais difíceis da diplomacia internacional: fazer a paz entre inimigos que muitas vezes não a querem.
O Mundo é um lugar perigoso, onde os mais elevados sentimentos do ser humano são constantemente contrariados pelos seus mais baixos instintos e ambições. Nessa luta permanente entre aquilo que desejamos ser e aquilo que somos na realidade, a Organização das Nações Unidas ocupa um lugar especial.
A ONU é a joia que coroa todos os sonhos pacifistas do fim da Segunda Guerra Mundial. Durante três ou quatro anos – não mais – houve a ilusão de que o Mundo podia mesmo transformar-se num lugar totalmente diferente, em que o Direito e a Justiça se iriam sobrepor à força nas relações entre Estados, e entre estes e os seus cidadãos.
A Guerra Fria veio diluir esses sonhos, mas algo deles ficou – e não foi pouco. Antes da criação da ONU e do aparecimento dos convénios internacionais que lhe dão razão de ser, era habitual que os Estados resolvessem os seus conflitos através de guerras de agressão e anexação. Depois do aparecimento das Nações Unidas, essas situações tornaram-se muitos mais raras e, quando aconteceram, foram quase sempre contrariadas pela comunidade internacional, como aconteceu em 1990, quando o Iraque ocupou o Kuwait. A verdade é que, por estranho que possa parecer, o Mundo está menos violento do que já foi recentemente. A primeira metade do séc. XX foi uma das épocas mais sangrentas da história da Humanidade; a segunda metade, apesar da Guerra Fria e dos conflitos que dela decorreram, foi relativamente pacífica. Uma das explicações para isso foi a existência da ONU.
Através da diplomacia, das suas inúmeras agências e dos seus “capacetes azuis”, a organização conseguiu evitar algumas guerras, minorar os efeitos de muitas mais e levar a paz onde ela parecia, frequentemente, ser impossível.
Conseguiu fazê-lo porque tinha um prestígio e uma legitimidade quase sem paralelo na cena internacional. Conseguiu fazê-lo porque representava – e ainda representa – as mais elevadas aspirações da Humanidade, a que nem, por vezes, o cinismo mais requintado consegue fazer frente. Conseguiu porque, depois de 1945, os Direitos Humanos passaram a ser princípios universais que nem as ditaduras mais empedernidas se atreviam a negar, mesmo que os violassem todos os dias.
O rosto das Nações Unidas é o seu secretário-geral, mas isso não faz dele um homem poderoso. É isso que temos de ter sempre presente agora que um português vai ocupar esse cargo. António Guterres tem plena consciência disso, ou não tivesse ele passado dez anos a frente do Alto-Comissariado da ONU para os Refugiados, um dos cargos internacionais onde a desproporção entre aquilo que é necessário fazer e aquilo que é possível fazer é maior.
No seu discurso após a eleição pela Assembleia-Geral, a 13 de Outubro, Guterres disse que o seu trabalho passará essencialmente por ser um mediador, um facilitador, um construtor de pontes. Nada mais verdadeiro.
O secretário-geral pode apontar e denunciar, mas tem de ter sempre presente que nada disso resolve os problemas, porque ele não tem meios para obrigar seja quem for a fazer aquilo que ele quer. Esse papel só pode ser desempenhado pelos Estados-membros da ONU e, especialmente, pelo Conselho de Segurança, porque é aí que está o poder de determinar sanções ou mesmo intervenções militares.
Dado que cada um dos países que são membros permanentes do Conselho (Estados Unidos, Rússia, China, Grã-Bretanha e Franca) tem poder de veto sobre todas essas decisões, decorre daí que nada pode ser feito sem consensos alargados. Obtê-los é a principal tarefa do secretário-geral, e aí restam poucas dúvidas de que António Guterres está muito bem equipado para a cumprir. Basta lembrar que um dos principais argumentos políticos que o levaram à chefia do Executivo Português entre 1995 e 2002 foi a sua aposta no diálogo como ferramenta fundamental da governação.
Enquanto decisor político, essa aposta foi muitas vezes usada contra ele, dado que transmitia uma imagem de falta de convicção e firmeza, ou até mesmo de oportunismo; enquanto diplomata da ONU, essa mesma característica não poderia ser mais essencial.
Ser uma “picareta falante”, como foi apelidado em Portugal, nos anos 90, está muito longe de ser mau quando se é secretário-geral da ONU. Manter um diálogo é, muitas vezes, a única coisa que se consegue fazer quando se esta nesse cargo – e, em certas ocasiões, já uma proeza digna de Nobel da Paz. Conseguir que algo de concreto saia desse diálogo é muito mais difícil.
Veja-se o caso da guerra na Síria, que Guterres já elegeu como a sua primeira prioridade. As Nações Unidas tem sido relegadas para um papel secundário nas negociações para pôr fim ao conflito (facto a que também não será alheio o fraco desempenho do actual secretário-geral, o sul-coreano Ban Ki-moon), mas a verdade é que nem os Estados Unidos, nem a Rússia, apesar de já terem acordado vários cessar-fogos bilateralmente, conseguiram (ou quiseram) que os combates parassem.
Esta é uma das tendências preocupantes que António Guterres terá de combater nos próximos cinco anos a desvalorização do papel da ONU e o regresso da política de poder entre as grandes potências, que tende a colocar de lado os Direitos Humanos e a resolução equilibrada dos conflitos internacionais.
A reaparição da Guerra Fria entre Estados Unidos e Rússia, que agora se centra na Síria, mas que pode surgir rapidamente em locais como a Ucrânia e outras partes da Europa de Leste, é outro dos principais desafios que o novo secretário-geral terá de enfrentar. Outro é o terrorismo de inspiração islâmica e as respostas mais ou menos musculadas a esse fenómeno que, por vezes, tendem a criar problemas mais graves do que aquele que lhes deu origem.
Em qualquer uma dessas situações, António Guterres tem uma tarefa essencial pela frente: colocar os direitos e a dignidade humana no centro de todas as soluções e convencer quem tem poder para mandar calar as armas que a decência é boa para todos, seja agora, no ano que vem ou daqui a cem anos.
Uma tarefa dura, portanto. É que o Mundo está mesmo a ficar mais perigoso.
ROLANDO SANTOS
Família Cristã