«Se mudamos o homem, podemos mudar o mundo»
MENSAGEIRO DO CORAÇÃO DE JESUS – Há 48 anos, Andrea Riccardi, na altura um jovem estudante, decidiu, juntamente com alguns amigos, levar o Evangelho à prática e desenvolver acções concretas a favor dos mais desfavorecidos. O que o levou a tomar esta iniciativa?
Andrea Riccardi – A comunidade de Santo Egídio nasceu em 1968, entre os estudantes de um liceu romano. 1968 foi um ano particular. No mundo juvenil respirava-se um ar de mudança, entrevia-se a possibilidade de mudar o mundo e, junto a isto, havia um outro ambiente que se respirava, o do Concílio Vaticano II, do renovamento em curso na Igreja Católica. Neste clima nasceu a Comunidade. Mas o incentivo à mudança poderia ter sucesso apenas se partisse da mudança pessoal. Com simplicidade, mas com convicção, pensava: se mudamos o homem, podemos mudar o mundo. Apenas homens novos poderão criar um mundo novo. Por isso, confiámo-nos à Palavra de Deus e começámos a segui-la, tentando pô-la em prática, frequentando o mundo da periferia de Roma, entre os pobres. Assim, os pobres foram, desde o início, os nossos companheiros, os nossos amigos, parte da nossa família.
MCJ – Foram sempre bem aceites pela sociedade e pela Igreja?
A.R. – O encontro com os pobres e o desejo de comunicar o Evangelho fez-nos sempre viver uma dimensão ampla, uma visão alargada, aberta ao mundo. Encontrar os outros, falar, dialogar, a amizade são traços decisivos do nosso modo de ser. Em Maio de 1986, o Pontifício Conselho dos Leigos reconheceu a Comunidade de Santo Egídio como uma “Associação Pública de Leigos”. Um reconhecimento que deu carácter oficial a uma presença de já quase 20 anos dentro da Igreja.
MCJ – Nos anos 70 e 80, a Comunidade expandiu-se consideravelmente. Primeiro para outras cidades italianas, depois um pouco por todo o mundo. O que determinou o crescimento e a internacionalização de um pequeno projecto que nasceu num bairro italiano e hoje tem 50 mil leigos em mais de 70 países?
A.R. – No início da nossa história não pensávamos em criar comunidades fora de Roma: a nossa escolha era edificar a Comunidade na Igreja local de Roma. diria que foram a vontade de anunciar o Evangelho e a amizade com os pobres que nos levaram a olhar para além da nossa cidade, para a Itália e para o mundo. As nossas Comunidades fora de Roma nasceram sempre de um encontro pessoal com alguém que queria viver no espírito da nossa Comunidade, a centralidade do Evangelho e o serviço aos pobres. Assim, com o passar dos anos, nasceram comunidades fora de Roma, primeiro em Itália e depois em todo o mundo. Hoje, estamos presentes em mais de 70 países, em todos os continentes. Formamos assim uma fraternidade de Comunidades que em Roma tem o seu ponto de unidade. Sejam grandes ou pequenas, todas as nossas Comunidades rezam e servem os pobres, sentindo-se parte de uma família sem fronteiras.
MCJ – Para além do serviço aos mais desfavorecidos (pobres, doentes, imigrantes, presidiários, etc.), uma das principais vertentes da Comunidade é a defesa da paz e dignidade humana e a promoção do diálogo inter-religioso. Que projectos têm sido desenvolvidos neste âmbito? Em que países?
A.R. – A escuta do Evangelho e o encontro com os homens fizeram amadurecer em nós a vocação para o diálogo, para a paz. O trabalho pela paz e o diálogo é certamente uma componente essencial do espírito de Santo Egídio. Graças à mediação da Comunidade, a 4 de Outubro de 1992, é assinado em Roma o acordo de paz entre o Governo moçambicano e a guerrilha, que punha fim a uma guerra que durou 16 anos, com um milhão e meio de mortos. Às vezes, perguntam-nos, como então fez uma jornalista do Washington Post: «Quando é que deixastes a assistência aos pobres e vos lançastes na diplomacia?». Mas o trabalho pela paz não é diferente do trabalho pelos pobres, pelo contrário, nasce precisamente do empenho pelos pobres porque a guerra é a mãe de todas as pobrezas. O nosso trabalho pela paz não criou um Santo Egídio “diplomático”, o trabalho pela paz começou ajudando os pobres em Moçambique, onde tudo estava bloqueado pela guerra. O caso de Moçambique fez-nos intuir que os cristãos têm uma grande força de paz. Pode dizer-se que, depois de 1989, todos podem fazer a guerra, qualquer grupo, etnia, máfia pode pegar nas armas e fazer a guerra. Mas também é verdade que todos podem fazer mais pela paz e trabalhar mais pela paz. A nossa experiência fez-nos descobrir que tínhamos recursos de paz.
MCJ – De que forma as diferentes religiões podem dar um contributo para a paz?
A.R. – O tema da paz hoje é central e sê-lo-á cada vez mais na vida das comunidades cristãs e dos crentes de todas as religiões. A guerra voltou ao território europeu, entre a Rússia e a Ucrânia. A Síria é afectada por uma guerra dilacerante e desumana. O Papa Francisco falou dos conflitos contemporâneos quase como uma Terceira Guerra Mundial, mas aos bocados ou por capítulos. Neste cenário, é lícito perguntar-se: A paz representa o nosso futuro? O que podemos fazer pela paz? Acreditamos que as religiões podem trabalhar pela paz e pela convivência. O diálogo entre as religiões é uma resposta adequada para viver juntos em regiões e cidades, cada vez mais complexas, etnicamente e religiosamente. É uma prática quotidiana, que se torna proposta e cultura. É o caminho do “Espírito de Assis”, do primeiro grande encontro entre as religiões, convocado em 1986, na cidade de São Francisco, por João Paulo II, ainda no tempo da Guerra Fria. A Comunidade de Santo Egídio continuou este caminho desde 1986, ano após ano, reunindo pessoas das várias religiões, e pessoas sem religião, para trabalhar nesta delicada fronteira, espiritual, mas concreta.
MCJ – Como se lida com uma guerra alicerçada em fundamentalismos religiosos?
A.R. – As religiões, por vezes, são atraídas pelo culto da violência, capazes de solicitar um fanatismo simplificador e desumano. Diante disto, não só as religiões devem resistir, mas devem voltar à sua profunda força de paz. A força do “Espírito de Assis” está em confirmar que não existe guerra e violência em nome de Deus: dizemo-lo dentro das próprias tradições religiosas, advertindo que a violência em nome de Deus é uma blasfémia.
MCJ – O nome Comunidade de Santo Egídio, mesmo fazendo referência a uma localidade italiana, funciona como marca fora de portas?
A.R. – O Papa Francisco, visitando a nossa comunidade, disse-nos que oração, Pobres e Paz são os traços fundamentais da vocação da Comunidade. É uma bela definição daquilo que somos e queremos ser. Mas não é um traço apenas romano ou italiano, é um traço universal.