Singapura: e o mundo parou…
A espectacularidade do encontro de Singapura, impensável há poucos meses, entre Donald Trump e Kim Jong-un, de terça-feira, 12 de Junho, foi dos raros momentos da vida internacional em que o mundo como que parou e suspendeu a respiração, vendo o “milagre” acontecer. Dois inimigos que, pouco antes, prometiam destruir-se, numa espécie de vertigem de ameaças e insultos recíprocos, apertavam as mãos, perante os media mundiais, testemunhas de um dos acontecimentos mais improváveis deste século.
Trump e Kim fizeram História. Sem saber, como sempre acontece, a História que estavam a fazer, isto é, as consequências próximas e longínquas daquele seu acto.
Punham assim termo, simbolicamente, a quase sete décadas de conflito aberto ou larvar, entre os respectivos líderes seus antecessores, herdeiros eles próprios das sequelas de um dos conflitos maiores, posteriores à Segunda Guerra Mundial.
A Guerra da Coreia (1950-1953) provocou pelo menos dois milhões e meio de mortos e destruiu praticamente as infra-estruturas e os centros urbanos, através da península, sendo Seul, por exemplo, várias vezes saqueada e a sua população dizimada, nas diferentes fases do conflito.
Mas todo o território sofreu terrivelmente, toda a nação coreana foi atingida no seu corpo e na sua alma – e, quando se trata de vítimas, não há naturalmente os bons e os maus mortos…
Quando as actividades militares foram suspensas em Julho de 1953, uma nação inteira ficou dividida, famílias foram separadas para sempre e os regimes políticos instalados nas duas partes da península passaram da guerra quente, brutal, a uma guerra fria, cheia de suspeitas e recriminações recíprocas, bem simbolizadas, até há pouco, pela guerra sonora dos altifalantes que, na zona desmilitarizada, vomitavam propaganda para o território do adversário.
Este período ficaria marcado por episódios rocambolescos que adornaram a história da península e do Mundo, dividido em dois blocos ideológicos e militares antagónicos.
A ausência de guerra não significou realmente a paz. E a reconciliação ficou adiada para um outro século, o actual, com outros protagonistas e numa conjuntura internacional impensável, em meados do século XX.
Entretanto, na rivalidade inter-coreana, Norte-Sul, introduziu-se, desde a década de oitenta do século passado o factor nuclear, visto como a segurança definitiva do regime do Norte, e a equação coreana passou desde então a ser um dos pontos, cada vez mais preocupantes, da agenda da segurança global.
Uma possível resposta militar americana a esse perigo crescente nunca desvalorizou, felizmente, a contabilidade apocalíptica de milhões de vítimas prováveis, só na região de Seul, refém da geografia, pois apenas a cerca de cinquenta quilómetros da zona desmilitarizada. Isto é, a curta distância de um milhão de homens em armas, prontos para o contra-ataque, segundo a narrativa oficial dos termos de um novo conflito.
E aconteceu Singapura
O capítulo mais recente da rivalidade entre a Coreia do Norte e os Estados Unidos coincidiu com o progresso exponencial do programa nuclear norte-coreano que teve como resposta, desde a tomada de posse de Donald Trump, uma retórica cada vez mais belicosa, de parte a parte aliás, culminando com a ameaça de destruição total da RPDC pelo Presidente americano, no lugar mais inadequado mas mais teatral, bem ao estilo de Donald, o próprio pódio das Nações Unidas.
Não poucos pensaram que estava iminente um conflito de proporções catastróficas. Temeu-se realmente o pior, até porque o Presidente se rodeara de gente radical, orientada pela ideologia nacionalista a mais intolerante, orientada para a restauração da hegemonia absoluta da América no mundo.
Claro que o encontro histórico de Singapura não foi milagre nenhum… mas, antes, o encadear de muitas acções humanas, motivadas por uma mistura complexa de desejo sincero de paz, de cálculo estratégico da parte de alguns e de vontade desenfreada de protagonismo no palco mundial, por parte do inquilino da Casa Branca.
Trump desejou vedetismo, Kim desejou segurança, a China desejou e deseja estabilidade, Seul desejou e deseja a paz… e idem idem o Japão. Claro que esta fórmula é simplista, mas traduz grosso modo as motivações essenciais de cada um dos principais actores deste drama.
Desde a campanha eleitoral que Donald Trump incluiu a questão norte-coreana no argumentário dos seus comícios, zurzindo sem piedade os antecessores, por não terem estado à altura do desafio. E prometeu reiteradamente a rendição da Coreia do Norte ao seu “diktat” de novo imperador americano: ou a desnuclearização sem condições ou o apocalipse. Como se esperava, não foi isso que aconteceu em Singapura. Mas, primeiro, a já sugerida motivação do encontro, por ambas as partes.
Kim, o estratego…
…e Trump, o homem-espectáculo! E com esta dicotomia fica quase tudo dito sobre o papel reservado pela História a estas duas personalidades tão diferentes. Na idade, na cultura, na sensibilidade, na visão do mundo. Em tudo.
Kim Jong-un herdou, do avô e do pai, a astúcia própria do mais apurado instinto de sobrevivência. Política porque pessoal. Obrigado à reclusão forçada, por ter que gerir uma situação interna e internacional cada vez mais adversa ao tipo de liderança que recebera, como legado, dos seus antecessores, Kim acentuou o pendor securitário do regime, com os episódios mais extremos que o mundo conhece. E esperou pela oportunidade de uma abertura. Que veio pela mão do mais improvável, do mais errático dos líderes mundiais que o mundo conheceu, em décadas mais recentes.
Vaidoso e superficial, Trump aposta no seu pseudo-magnetismo sobre as pessoas para lhes extorquir aquilo que o seu ego mais ambiciona: a atenção dos outros, a atenção de todos.
E como sabe que o magnetismo não basta, cedo vestiu a fatiota de novo rico para comprar, à custa de muitos dólares, o que não suscita naturalmente: respeito e consideração.
Os diferentes líderes mundiais viram isso desde o início. E passaram a jogar cada vez mais, a seu favor, com a jactância de Trump. E mandaram estender as passadeiras de luxo para amortecer os delicados pés do novo imperador. E ofereceram-lhe os banquetes mais requintados, as prendas mais valiosas, o protocolo mais exigente, tudo para aplacarem a sede de um egocêntrico inveterado, um ego-dependente…
Mas Trump quer ficar para a História e por isso quer fazer diferente. E depois de uma série de insultos infantis, trocados com o líder norte-coreano, decidiu aceitar o repto de um encontro. Contra o aviso de quase todos.
Uma mão cheia… de nada?
Em Singapura, é caso para se dizer, a montanha pariu um rato! Depois de tanta crítica aos Presidentes seus antecessores, Trump assina, no fim da cimeira, uma página e meia de texto curto e vago, quatro ou cinco parágrafos de boas intenções, extremamente genéricas na formulação. Mas a paz tem valor absoluto e a partir do teatro político de Singapura há que extrair conclusões positivas.
Dizem os defensores de Trump que o mais importante não é o que foi vagamente expresso, mas o que foi acordado no segredo da conversa privada entre os dois líderes. Será assim?
Temos que nos agarrar ao positivo que resulta do encontro. O relacionamento pessoal entre os dois, as visitas recíprocas que se realizem, mas sobretudo a vontade de abertura económica da Coreia do Norte, em que a China terá papel decisivo.
Carlos Frota
Universidade de São José