Os planos são sempre muito bonitos no papel mas muitas vezes acabam por sair furados. Estava tudo planeado e as condições atmosféricas eram as melhores, mas depois de seis horas de muita vela e mais de 30 milhas percorridas (das quase 450 que separam Martinica da primeira ilha das Antilhas Holandesas, Bonaire) o estai de proa que suporta o mastro e inclui o enrolador da vela da frente (genoa) partiu!
É um dos piores cenários a bordo, logo atrás da queda do mastro, rombo no casco ou incêndio.
Seguíamos directos ao destino, com vento de popa e as velas abertas em borboleta (a vela do mastro para um lado e a genoa para o lado oposto), numa média de cinco nós, o que iria permitir cumprir mais de cem milhas por dia, num total de quatro dias de viagem. Até o leme de vento estava a trabalhar bem, sendo que o chartplotter (mapa e rádio VHF) era o único electrónico que ia consumindo alguma bateria. Tudo o resto estava desligado. A Maria dormia a sesta antes do almoço, o Noel também “passava pelas brasas” e eu, enquanto dormitava, pensava no que iríamos almoçar.
De repente, sem que nada o fizesse adivinhar, ouvi o barulho ensurdecedor do cabo a partir na base, junto do enrolador da vela. Esta sacudia violentamente de um lado para o outro, apenas segura pelo cabo que a iça ao mastro e pelo pequeno cabo que a abre e recolhe, pouco mais espesso que uma corda de enxugar roupa, logo, sem força para suportar os mais de mil quilos de força que a vela produz.
Vesti um colete e, com a linha de segurança presa ao cabo que corre de uma ponta à outra do veleiro, peguei no primeiro cabo que encontrei e segurei a vela na posição original na proa do veleiro. Com a vela mais ou menos estabilizada e muitas feridas nas mãos e nos braços, recolhi o pano para evitar novos estragos. Felizmente o sistema do enrolador não ficou danificado e manteve-se operacional, o que permitiu enrolar a vela.
Visto que o estai de proa estava laço foi necessário encontrar uma forma de substitui-lo. Recorri à adriça que normalmente utilizamos para subir e descer o bote, prendendo-a num ponto forte perto das âncoras.
Quando parecia que tudo estava minimamente resolvido, o mastro começou a partir com o roçar da vela enrolada. Tive de encontrar outro cabo, descer a secção que estava a partir e emendá-la. Assim se manteve até chegarmos a porto seguro.
Com a situação sob controlo havia que contactar os amigos do Gentileza, que já iam cerca de duas milhas à nossa frente, informando-os de que iríamos regressar a Martinica. Não deu para explicar muito bem a situação, mas conseguimos informá-los de que tudo estava bem. A Maria, essa, continuava a dormir…
Perto do meio-dia demos meia volta, tendo agora de enfrentar um mar com mais de metro e meio de altura, ventos entre quinze a vinte nós e corrente contrária. Aliás, tudo o que nos tinha facilitado a vida até ao acidente voltara-se contra nós. Restou-nos o velhinho motor do veleiro. Não o esforçámos em demasia, pois se avariasse ficávamos à deriva sem qualquer outro meio de controlar o barco. Decidi avançar num pequeno ângulo do vento, tentando evitar enfrentá-lo directamente, pelo menos até estarmos a menos de dez milhas da costa, quando o mar começasse a diminuir pelo efeito da proximidade da ilha. À uma da manhã chegámos perto de Martinica.
Como estávamos mais próximos de Fort-de-France do que do Sul (Le Marin, Sainte Anne) fomos para a capital, onde ancorámos em segurança num local que conhecia relativamente bem. Às quatro da manhã já eu e a Maria tínhamos comido, tomado banho e prontos para dormir. No dia seguinte havia muito a consertar.
Como tínhamos uma data limite para chegar ao Panamá, por força do voo da NaE – proveniente de Hong Kong – decidi não efectuar a travessia para as Antilhas Holandesas. Vamos esperar em Martinica pela chegada da NaE, que entretanto, felizmente, conseguiu mudar o destino do voo para Martinica.
Para descansar os leitores, quero sublinhar que nunca estivemos em perigo. Situações como esta são normais nos veleiros: os materiais ficam “cansados” e acabam por partir. Quem vive e convive com barcos tem de estar preparado para as enfrentar. Quando acontecem há que as controlar, minimizar e escolher a melhor forma de as resolver. Se o acidente tivesse acontecido no segundo ou no terceiro dia, possivelmente, não voltava para Martinica e teria seguido a motor. O tanque de gasóleo estava cheio e dava para mais de metade da viagem, sendo que temos reservas que dariam para o resto do percurso. Estando a uma distância curta de terra, preferi voltar para porto seguro e reparar os danos. Os procedimentos de emergência e os respectivos equipamentos nem sequer foram activados….
JOÃO SANTOS GOMES