Os “Cristãos Escondidos” no Japão – IV
«Nós temos o mesmo coração que tu», «onde está a imagem de Santa Maria?». Duas perguntas que estremeceram o padre Petitjean. De alegria misturada com surpresa e espanto. E esperança. Aquele pequeno grupo de fiéis japoneses, o “grupo de Santa Maria de Oura”, era uma centelha do passado e do futuro das missões católicas no Japão. A notícia rapidamente correu o Japão e o mundo. Mais de dois séculos depois, sem sacerdotes, revelava-se ao mundo uma história de tenacidade e de fé, algo sublimemente profético e ao mesmo tempo de força no presente da Igreja no mundo de então.
Acabava a ocultação da fé para aqueles cristãos de Urakami. Embora mantendo a típica discrição nipónica, o recato e um certo silêncio. Mas não significava isto que as coisas ficaram mais fáceis. A partir de então deixou de se fazer os funerais segundo os preceitos budistas, ainda que declarassem o falecimento ao líder da aldeia, que até então conduziria a cerimónia de acordo com rituais budistas. Agora, apenas lhe reportavam o óbito. Perante isto, o chefe da aldeia logo transmitiu esta mudança às autoridades, até chegar a novidade ao topo da administração provincial de Nagasaki e daí a Tóquio.
Os burocratas, claro, iniciaram inquéritos e acabaram a ordenar a prisão de 68 cristãos, que foram inquiridos e sujeitos a uma cruel tortura posteriormente, para renegarem a fé. Parecia que se estava, afinal, a regressar ao tenebroso passado, de dor e sofrimento, aquando da clausura do Japão ao exterior, em 1638 e anos seguintes. A repressão recomeçara, em Urakami, naquele ano de 1867, quase matando a esperança do recomeço, dois anos antes, na igreja de Oura.
COMPLICAÇÕES…
Foram dois anos de baptismos, confissões, sacramentos vários realizados por missionários que acorriam às comunidades cristãs. Dois anos de reencontros de missionários e comunidades cripto-cristãs; dois anos de renascimento, com o ressurgir à luz do dia de centenas de fiéis. Mais de dois séculos aliviados em dois anos. Mas as complicações não tardariam.
Os fiéis abriram o peito à repressão com maior vigor e professavam a sua fé abertamente, o que era tido como um desafio pelas autoridades. Mais de três mil cristãos da região de Urakami foram reunidos à força e depois dispersos por 22 lugares diferentes no Sul do Japão, de forma a fragmentar a comunidade e obrigar os seus membros a converterem-se ao Xintoísmo, a religião oficial e nacional do Japão. A nova dinastia Meiji manteria esta prática, mesmo que imbuída que estava de propósitos de abertura e ocidentalização do País. Registaram-se dois movimentos de dispersão de cristãos, em 1868 e 1869, com destaque para os membros da comunidade de Urakami. Mais de seiscentos cristãos morreram como mártires neste período, a que muitos designam como a “última perseguição”.
Um novo édito de banimento da fé cristã estava iminente. Os Meiji mantinham a política dos Tokugawa. E a esperança desvanecia-se, mas não morria! Noutros tempos as perseguições eram movidas por samurais ao serviço do xogum; agora, com os Meiji, eram burocratas, provenientes da hierarquia e academias do Xintoísmo ou do Ensino Nacional. Existia um plano de unificação do País, centrado no imperador, considerado descendente directo da mais importante divindade xinto, Amaterasu Omikami, a Deusa-Sol. Assistiu-se ao reforço do poder do imperador, uma divindade xinto, logo o Xintoísmo e o poder eram um só. E o Cristianismo estava fora deste plano de restauração nacional, de unidade da religião e do Estado. Os representantes xinto e os académicos do Ensino Nacional estavam agrupados na mais importante instituição governamental, o Bureau (ou Ministério) do Santuário (N.T.) – um dos seus objectivos era a reeducação xintoísta dos cristãos, mesmo que fosse de forma forçosa e menos pedagógica, como terá acontecido. Mas as coisas não foram fáceis para os académicos e técnicos governamentais, que empregavam métodos baseados na supremacia de uma teoria nacionalista sobre a fé. Ora, a fé falava mais alto e os resultados de conversão, mesmo com tortura, não eram os esperados. A força substituiu os poucos laivos de conversão pelo ensino que existiam e a tortura tomou conta de todo o processo.
A dor substituiu o kanji dos livros e das aulas de conversão, mas não a fé dos homens. Estes, cristãos, eram submergidos em água, na neve ou no gelo, colocados em gaiolas minúsculas, submetidos à fome, ou então torturavam os filhos à frente dos pais, e por aí fora. Aspereza, crueldade, miséria, eram estes os métodos, piores até que no período anterior. Mas agora as coisas não ficavam confinadas ao Japão. E tudo isto perpassava as suas fronteiras e chegava às nações ocidentais. Aquelas que o Japão queria afinal imitar. Embora, na questão religiosa, não estivessem a cumprir, aquelas nações não apareciam igualmente muito bem na “fotografia” da tolerância religiosa naquela época. Mas foram determinantes, todavia, na resistência internacional face ao que sucedia no Japão em matéria de religião.
Com efeito, diplomatas estrangeiros enviavam relatórios, nada abonatórios, para os seus países a reportar a intolerância anti-cristã dos nipónicos e a prática de formas de tortura sobre os fiéis. Ao mesmo tempo, apresentaram protestos formais e em regra ao governo Meiji contra estes abusos. Em Dezembro de 1871, na sequência de toda esta indignação e da pressão internacional, o Governo nomeou o Ministro da Justiça, Iwakura Tomomi (1825-1883) como embaixador plenipotenciário especial e enviou-o, com outros diplomatas, a visitar os Estados Unidos e vários países europeus numa missão especial. O grande propósito desta embaixada era o início de conversações preliminares para a revisão dos tratados desiguais (ou “iníquos”) assinados entre o Japão e essas potências ocidentais, além da observância das instituições e da “civilização” europeia e norte-americana. O estabelecimento de relações diplomáticas entre o Japão e essas nações era um objectivo subsequente. Mas uma das condições para tal desiderato era o levantamento, por parte do Japão, das leis de banimento e exclusão do Cristianismo.
À conta desta imposição estrangeira, a missão japonesa enfrentou as piores experiências e sofreu grandes embaraços no périplo diplomático. Ulysses S. Grant, Presidente dos Estados Unidos, a rainha Vitória de Inglaterra e o rei Cristiano IX da Dinamarca criticaram severamente a política Meiji em relação aos cristãos e às perseguições e flagelos que as autoridades nipónicas lhes impunham. Iwakura era precedido sempre de artigos verrinosos na imprensa contra o Japão, com a opinião pública a criticar violentamente o País. A questão religiosa era o mais sério obstáculo ao êxito da missão e até da almejada ocidentalização do Império do Sol Nascente. A questão dos Direitos Humanos nascia no âmbito das perseguições anti-cristãs no Japão.
Vítor Teixeira
Universidade Católica Portuguesa