Os “Cristãos Escondidos” no Japão – III
A vida estava difícil para os cristãos no Império do Sol Nascente. E demoraria muito a ficar menos áspera. Atravessariam o século XVIII todo e esperariam por meados de Oitocentos. Mais de duzentos anos de sofrimento e escondimento. Uma clandestinidade que teve os seus frutos, uns melhores, outros nem tanto. O longo período de dominação dos Tokugawa, em meados do século XIX, começava a desenhar o seu fim. Parecia haver tempo para esperança, mas era cedo para a ter…
A pressão diplomática ocidental crescia para que o Japão se abrisse. Apenas chineses e holandeses frequentavam o País, e às vezes também os ingleses. A política de isolamento do Império era cada vez mais posta em causa. Além de atrasar o País. O principal objectivo era, como se sabe, fechar o Japão aos missionários estrangeiros, de forma a conservar as tradições nipónicas. Ainda que, encapotadamente, existisse outro objectivo, urdido por holandeses, que era o de manterem o exclusivo do comércio e negócio com os japoneses (com excepção dos chineses), enfraquecendo os interesses ibéricos instalados em Macau, Índia (Portugal) e Filipinas (Espanha).
Em 1853, o comodoro americano Matthew Perry (1794-1858), comandante-chefe da Esquadra do Índico Oriental, dos Estados Unidos, à frente de uma frota de navios de guerra, postou-se defronte do porto de Uraga, na baía de Tóquio. Dispondo de elevado poderio militar, Perry impôs aos japoneses a abertura dos seus portos aos americanos. No ano seguinte, em 1854, o Governo do xogunato assinaria um tratado de paz entre o Japão e os Estados Unidos, estes representados pelo comodoro Perry, que voltara nesse mesmo ano uma segunda vez ao Japão para abrir mais portos, como Shimoda e Hakodate. O maior efeito prático destas missões de Perry foi o fim do isolamento nipónico face ao exterior. Uma vez mais, os desígnios económicos impunham-se, ateando os fins militares a usar, só assim se podendo vir a impor a abertura para outros efeitos, como o missionário e o cultural. Assim se fez e o Japão abriu-se. Em 1858, o xogunato, moribundo e incapaz, assinou mais tratados de amizade e comércio com os Estados Unidos, Rússia, Holanda, Inglaterra e França, as grandes nações da época, que já espreitavam e dominavam na China.
«NÓS TEMOS O MESMO CORAÇÃO QUE TU»
A fraqueza dos governantes japoneses, que antes fecharam o País, mas que agora eram forçados a abri-lo, permitiu que na sequência de todos estes acordos se criasse a oportunidade de regresso para os missionários católicos. E também o tempo de revelação de algo desconhecido, encriptado e diluído na noite dos tempos, como a névoa que cobre os arrozais do Japão no Inverno…
De repente, emergiram segredos e histórias de fé incríveis naqueles dias de abertura. Ficou-se a conhecer, então, que na aldeia de Urakami, perto de Nagasaki, a fé cristã, banida durante cerca de 250 anos, tinha sido preservada e sistematicamente passada de geração em geração. Urakami havia sido uma área de missionação jesuítica antes de 1634, entregue à Companhia de Jesus por um daimyo cristão, Arima Harunobu. Depois, ali permaneceria uma comunidade criptocristã.
Os Tokugawa, ainda defensores da sua política isolacionista, declinavam, e o poder regressava gradualmente às mãos do imperador Meiji (1852-1812; imperador entre 1867 e 1912). O País rumava em direcção ao Ocidente, à modernização pela abertura e assimilação de culturas da Europa e América. Mas mesmo assim, apesar da abertura cultural, científica, tecnológica e política, subsistiam dificuldades no que toca à religião, mesmo que o Cristianismo estivesse intimamente conectado com aqueles ventos culturais ocidentais. Ainda subsistiam trevas no Japão. Mas os missionários lá iam regressando ao Japão, no caso as missões estrangeiras de Paris (MEP), consagradas à missão na Ásia. Em 1865, o padre Bernard-Thadée Petitjean (1829-1884) estava já na cidade de Nagasaki (vivia no Japão desde 1859), onde erigiu uma igreja, Oura, que mais tarde se converteria na catedral da diocese (Nagasaki). Era no início uma igreja para a nação francesa, mas aberta a todos.
Por aqueles dias, a 17 de Março de 1865, um mês depois da conclusão das obras da igreja (19 de Fevereiro), um grupo de japoneses, que ouvira falar da chegada de missionários e da fundação de igrejas, acercara-se da igreja de Oura e procurara, em absoluta discrição, o sacerdote que ali estava a capelanear. Eram quinze os japoneses, liderados por Sugimoto Yuri, e o sacerdote era o padre Petitjean. Este estava ajoelhado a orar na igreja, quando de repente sentiu, atrás de si, alguém se ajoelhar e sussurrar-lhe, serenamente, ao ouvido, uma frase que nunca mais esqueceria e que era quase como “santo e senha” de descoberta e reactivação da cristandade nipónica escondida. «Nós temos o mesmo coração que tu», fora o sussurro de uma mulher ajoelhada atrás de si. Era, pois, o primeiro momento de (re)descoberta e confirmação de suposições e relatos não confirmados de grupos escondidos de japoneses que tinham secretamente transmitido a sua fé. Era algo fantástico e realizado da forma mais plácida e até poética. Duzentos anos depois da cruel supressão do Cristianismo no Japão, eis os cristãos escondidos, os Kakure Kirishitan. Sem padres, a fé não se perdera, estava então confirmado.
«ONDE ESTÁ A IMAGEM DE SANTA MARIA?»
A alegria do missionário fora imensa, da parte dos japoneses, mais contida claro, mas retumbante no seu âmago, era a alegria do fim de uma travessia do deserto expiatório e desafiante, mas a caminhada multissecular valera a pena. O padre Petitjean, recorde-se, foi nomeado vigário apostólico do Japão em 11 de Maio de 1866 e bispo titular de Myriophiytos na mesma altura. Foi depois nomeado vigário apostólico do Sul do Japão em 1876, até à sua morte. Depois do sussurro e do missionário olhar para trás para atestar a realidade, vira que eram uns pobres pescadores e lavradores que ali estavam, temerosos de represálias, a medo, mas querendo apenas um sinal de que a Igreja voltara ao Japão. «Onde está a imagem de Santa Maria?», perguntou um deles, usando ainda a antiga designação ibérica dada à Virgem Maria, assim mantida ao longo de séculos, secretamente. Era uma forma de confirmarem que era um padre verdadeiro e que não havia perigo ou encenação das autoridades para os descobrir, como tantas vezes sucedera. Petitjean logo correu para um altar lateral da igreja e mostrou-lhes a imagem de Nossa Senhora que procuravam. «Sim, é mesmo Santa Maria! Ela tem o Menino Jesus nos braços!», exclamaram de alegria e emoção os japoneses, que logo se ajoelharam em reverência e emoção do reencontro. A alegria, para ambos, terá sido algo incrível, como se pode imaginar.
Vítor Teixeira
Universidade Católica Portuguesa