Deus e Cientistas.
Na sociedade moderna existe actualmente uma opinião generalizada que afirma que o estudo das ciências naturais torna desnecessária a fé em Deus, que a Religião (sobretudo a Católica) se opõe à Ciência e que a Igreja Católica é uma instituição retrógrada que combateu ferozmente o progresso científico. Mas, será que esta opinião é verdadeira?
Antes de mais, convém perceber, de forma sumária, o que normalmente se entende por Ciência nos debates sobre a sua relação com a Religião. Nestes contextos, a Ciência é definida como um esforço racional e sistematizado de conhecer o mundo natural ou material (i.e., o universo), através do método científico empírico. Este método baseia-se na observação dos fenómenos naturais, que implica sempre a medição e descrição sistematizada dos dados observados – ou seja, baseia-se na evidência empírica obtida pelos nossos sentidos (visão, audição, olfacto, tacto e paladar), de forma directa, com a ajuda de instrumentos tecnológicos e/ou através de experimentação laboratorial. A posterior análise dos dados são feitos com a imprescindível ajuda da matemática, da lógica e de elementares princípios filosóficos, como o da causalidade, que são intuídos e formulados por outros métodos racionais que não o método científico empírico. Da análise pretende-se gerar conhecimento organizado sob a forma de hipóteses, teorias e/ou leis científicas que consigam ordinariamente prever, explicar e até manipular determinado fenómeno natural e a sua relação com outros fenómenos naturais, sendo a relação de causa-efeito a descoberta mais desejada. Este conhecimento organizado deve poder ser reproduzido e confirmado, ou melhorado e até rebatido, por nova e repetida observação do mesmo fenómeno natural. Este método racional foi fundamental para o exponencial progresso tecnológico e desenvolvimento da Ciência moderna no Ocidente.
Da definição de Ciência se deduz que ela só consegue trabalhar com base em determinados pressupostos ou princípios filosóficos, que não são produto do método científico empírico. São esses princípios que dão significado, fundamento e sentido ao trabalho científico: por exemplo, se não tivermos a noção de que podemos conhecer a realidade, de que um fenómeno é causa e/ou efeito de um outro fenómeno, de que todos os fenómenos têm um princípio e um fim, de que muitos fenómenos têm uma frequência regular e uma natureza estável, ou seja, se não tivermos a noção de que o mundo está estável e racionalmente ordenado, então tentar descobrir e formular leis científicas que explicassem os ditos fenómenos seria uma tarefa sem nenhum sentido, uma perda de tempo, porque se o mundo não tivesse uma ordem racional, então os fenómenos naturais não teriam uma causa compreensível, sendo por isso, provavelmente, apenas produto do aleatório, de forças irracionais ou do mero capricho divino.
Porém, e ainda bem, nós sabemos, através da observação apoiada na filosofia, que o mundo está racional e estavelmente ordenado. Sendo racional, o mundo pode ser conhecido, compreendido e sistematizado por nós, que somos seres racionais dotados de inteligência e vontade livre. E esta noção ou conceito filosófico, que é o fundamento da Ciência, é firmemente reforçado e confirmado pela Revelação sobrenatural, da qual a Igreja Católica é sua fiel depositária. Baseando-se na razão e na Revelação, a Igreja ensina-nos que Deus criou sabiamente o mundo com uma ordem estável e racional, dispondo «tudo com medida, número e peso» (Sabedoria, 11:20).
Por isso, o cientista ou estudioso das ciências naturais, ao conhecer a ordem racional que rege as complexas relações entre os fenómenos naturais, pode também aperceber-se da harmonia, beleza, razão e sabedoria presentes nessa ordem racional. Esta contemplação da ordem natural só é possível e frutífero se o cientista conseguir pensar na realidade não apenas com o método científico empírico, que somente estuda realidades materiais. Por outras palavras, o cientista deve estar aberto às realidades espirituais, para que se torne num “testemunho privilegiado da plausibilidade da religião” (Papa São João Paulo II, Audiência geral, 17 de Julho de 1985; n. 4) e da existência de Deus, que é, entre outras coisas, a primeira causa necessária e o sustentáculo da ordem racional do mundo. Esta contemplação e suas conclusões sobre a existência de Deus são sustentadas pelos mesmíssimos princípios filosóficos que fundamentam o método científico e também por outros princípios e processos filosóficos (vide as cinco provas da existência de Deus de São Tomás de Aquino) (São Tomás de Aquino, Summa Theologiae I, 2, 3). De facto, citando o Concílio Vaticano I (1869-1870), o Catecismo da Igreja Católica ensina-nos que “Deus, princípio e fim de todas as coisas, pode ser conhecido com certeza pela luz natural da razão humana, a partir das coisas criadas” (Catecismo da Igreja Católica, n. 36).
Assim sendo, é falso afirmar que a Ciência afasta uma pessoa de Deus. Antes, com o apoio da filosofia e, sobretudo, da fé cristã, a Ciência ajuda uma pessoa a aproximar-se de Deus, que é a Razão criadora e ordenadora do mundo natural e do ser humano.
A Ciência e a Igreja Católica
Mais do que não ser oposta à Ciência, a Religião Católica desempenhou um papel muito importante na criação de um contexto cultural, académico, filosófico e religioso no Ocidente que foi propício e ideal para o desenvolvimento da Ciência e seu respectivo método empírico. De facto, citando o Concílio Vaticano I, o Catecismo da Igreja Católica ensina-nos que, “embora a fé esteja acima da razão, nunca pode haver verdadeiro desacordo entre ambas: o mesmo Deus, que revela os mistérios e comunica a fé, também acendeu no espírito humano a luz da razão. E Deus não pode negar-Se a Si próprio, nem a verdade pode jamais contradizer a verdade” (Catecismo da Igreja Católica, n. 159).
Por isso, não devemos achar estranho ou um mero acaso o facto de a Ciência moderna ter surgido precisamente na civilização ocidental, de matriz cristã, e não em outras civilizações que eram também bastante avançadas, como o caso da civilização chinesa.
E também não devemos achar anómalo o facto de haver cientistas que, simultaneamente e em unidade de vida, eram ou são leigos, religiosos ou sacerdotes católicos, dos quais citarei alguns exemplos:
– Roger Bacon (cerca de 1220-1292), um frade franciscano inglês que é considerado um precursor do método científico empírico, porque, inspirando-se em Aristóteles, defendeu a necessidade de observar e recolher dados do mundo natural antes de formular verdades científicas. Ávido leitor de obras científicas escritas em Árabe e em Grego, Bacon foi um importante estudioso e promotor da disciplina de óptica no meio universitário ocidental. É considerado também o primeiro ocidental a descrever, no seu Opus Majus (Obra Maior), uma mistura contendo os ingredientes essenciais para produzir pólvora. Bacon era particularmente crítico do calendário juliano, então em vigor no mundo cristão. A sua crítica, baseada em cálculos matemáticos, certamente teve influência, séculos mais tarde, no trabalho científico dos astrónomos responsáveis pela reforma do calendário ocidental, que foi autorizada pelo Concílio de Trento em 1545. Um dos astrónomos principais deste projecto era o padre jesuíta alemão Christophorus Clavius (1538-1612). A versão reformada do calendário, promulgada em 1582 pelo Papa Gregório XIII e que corrigiu uma série de incorrecções do calendário juliano, passou a designar-se de calendário gregoriano e ainda hoje está em vigor em todos os países do mundo como o calendário civil oficial.
– Beato Niels Steensen, em Português: Nicolau Steno (1638-1686), um bispo dinamarquês que, sendo protestante, se converteu ao Catolicismo em 1667 e que é considerado um dos fundadores da geologia e estratigrafia modernas. A curiosidade que ele tinha acerca da origem e do modo como os fósseis se incrustaram em rochas levou-o a efectuar estudos empíricos em geologia, que foram publicados, em 1669, na obra “De solido intra solidum naturaliter contento dissertationis prodromus” (Discurso prévio a uma dissertação sobre um corpo sólido contido naturalmente num sólido). Nesta obra, pelo menos quatro princípios básicos e fundamentais da estratigrafia moderna foram, pela primeira vez, desenvolvidos por Steno: os princípios da sobreposição, da horizontalidade original, da continuidade lateral e das relações de corte. Steno também se dedicou ao estudo da anatomia, tendo sido o primeiro a descrever o ducto parotídeo (ou ducto de Steno). Ele foi beatificado pelo Papa São João Paulo II em 1988, que afirmou o seguinte: “toda a vida de Nicolau Steno foi uma incansável peregrinação à procura da verdade, a científica e a religiosa, na convicção de que cada descoberta, ainda que modesta, constitui um passo adiante na direcção da verdade absoluta, na direcção daquele Deus de quem todo o universo depende” (Papa São João Paulo II, Homilia proferida na Missa de beatificação do cientista dinamarquês Niels Stensen, em 23 de Outubro de 1988).
– Gregor Mendel (1822-1884), um sacerdote e monge agostinho nascido no Império Austríaco e que é considerado o fundador da genética. Através das suas experimentações em hibridização com diferentes tipos de ervilhas, Mendel conseguiu estabelecer várias regras básicas de hereditariedade simples, que foram publicadas em 1866 no artigo Versuche über Pflanzen-Hybriden (Ensaios com plantas híbridas). Estas regras, que mais tarde foram aperfeiçoadas por outros cientistas, passaram a chamar-se de leis de Mendel. Basicamente, ele propôs que a existência de características (tais como a cor) das ervilhas é devido à existência de um par de unidades elementares invisíveis de hereditariedade (“factores”, agora conhecidas como genes) e que a transmissão destas unidades pode ser prevista e explicada por três leis científicas: as leis da segregação, da segregação independente e da dominância.
A ética na Ciência: o papel da Igreja Católica
A Igreja Católica não apenas forneceu o quadro filosófico e religioso certo e propício para o desenvolvimento da Ciência moderna, como também propõe ao ser humano, incluindo ao cientista, o modo certo de viver como um homem consciente da sua natureza e dignidade como filho de Deus em Cristo que foi chamado a “dominar a Terra como administrador(es) de Deus” (Compêndio do Catecismo da Igreja Católica, n. 71). Mais do que nunca, a tecnologia permite ao homem manipular e transformar, de uma forma cada vez mais radical, o mundo natural e a si próprio. Algumas possibilidades de manipulação, como o aborto, a eutanásia, a engenharia genética, a clonagem e a reprodução medicamente assistida, suscitam questões éticas sobre os limites morais da Ciência, cuja resposta a Igreja fornece a quem a quiser ouvir.
Os critérios morais propostos pela Igreja, que são baseados na Lei moral natural e na Revelação divina, têm por objectivo libertar o homem da sua vontade arbitrária de utilizar abusivamente a Ciência para fins anti-naturais (e imorais), que acabam por rebaixar a dignidade humana e/ou destruir o mundo criado e ordenado por Deus. Citando o Papa São João Paulo II, “quem a não ser Deus pode estabelecer uma ordem moral em que a dignidade de cada pessoa possa ser firmemente cuidada e promovida?” (Papa São João Paulo II, Audiência geral, 17 de Julho de 1985; n. 4).
Conclusão
Após uma não curta exposição de alguns argumentos e factos, pode-se chegar à conclusão de que a suposta incompatibilidade ou conflito entre Ciência e Fé (católica) é pura lenda negra! Infelizmente, é uma mentira largamente difundida por certos Meios de Comunicação Social e por currículos educativos que estão em vigor em vários países ocidentais, cujas elites políticas e intelectuais parecem não querer reconhecer as raízes cristãs da cultura ocidental. Uma mentira que urge ser combatida!
Por último, em jeito de síntese, convém relembrarmos o que o Concílio Vaticano II (1962-1965) afirmou sobre este assunto: “a investigação metódica em todos os campos do saber, quando levada a cabo de um modo verdadeiramente científico e segundo as normas morais, nunca será realmente oposta à fé, já que as realidades profanas e as da fé têm origem no mesmo Deus. Antes, quem se esforça com humildade e constância por perscrutar os segredos da natureza, é, mesmo quando disso não tem consciência, como que conduzido pela mão de Deus, o qual sustenta as coisas e as faz ser o que são” (Gaudium et Spes, n. 36).
Adriano Agostinho
Licenciado em Medicina