O que é arte e o que não é.
Aqui há uns anos foi elevada à condição de manifestação artística uma das mais destrutivas formas de vandalismo que impunemente tem vindo a atentar contra o património arquitectónico e a poluir visualmente Portugal de norte a sul, com maior incidência nas zonas metropolitanas. Refiro-me aos graffiti sem nexo desenhados em tudo que seja parede acabada de pintar, granito secular, monumento, fachada de igreja, câmara municipal ou painel de azulejo de tradição muito nossa.
Antes que haja confusões e chovam acusações, convém separar as águas. Há graffiti e graffiti. E o graffiti é sem dúvida uma válida forma de arte, desde que não interfira de modo algum com outras expressões artísticas. Sejam elas beirais de granito, ferro de quiosques, paredes de casas do século XIX, pedestais de monumentos (por mais execráveis que sejam as personagens que sustentam… fiquem descansados que para as humilhar estão lá as pombas), placas de toponímia, azulejos das estações ferroviárias e do metro, etc., etc… Precisamente o que está ser visado forte e feio no País. Porque quando interfere, quando invade o espaço alheio, o dito graffiti, por mais talentoso que seja (o que raramente é o caso), deixa automaticamente de ser arte para se transformar numa mentecapta forma de expressão, num verdadeiro insulto à sensibilidade e ao bom gosto. O graffiti tem o seu espaço de manobra e um raio de acção bem definido, e a ele se deve cingir.
Para ser sincero não percebo onde pretende chegar a suposta rebeldia da esmagadora maioria dos pinta-paredes de hoje. Pois, com tanto betão e vãos de viadutos por ilustrar, optam pela desvirtuação dos centros históricos das cidades, algumas delas consideradas património da humanidade. Que lhes chamar? Bando de vândalos sem princípios, ou simplesmente palermóides de todo o tamanho?
Assustador é o facto do Governo português não ter ainda reagido, classificando, por exemplo, esses indivíduos de ameaça pública. Que o são de facto, não tenhamos dúvidas. Os agentes da autoridade na rua mostram-se ineficientes e lentos a reagir. Ou não reagem, ponto. Até porque, rezam as estatísticas, as queixas continuam ínfimas se as compararmos com os prejuízos causados. São, todavia, milhares os euros despendidos pelas entidades municipais na limpeza do património afectado. Talvez porque façam o trabalhinho pela calada da noite, os “writers” raramente são apanhados com a boca na botija. O que não deixa de ser estranho, tendo em conta que algumas das “obras de arte” exigem pelo menos uma boa hora para serem concluídas. A conhecida passividade do povo português, que só se move em situações extremas, joga ainda em contra, já para não falar na retórica dos pseudo pensantes que defendem a continuidade da arte “pois enquanto os miúdos estão ocupados a pintar ou a desenhar não se metem noutras coisas como as drogas”. Lógica da batata, no seu melhor.
Certamente com a melhor das intenções, autarquias há, como a do Barreiro, que disponibilizam espaços apropriados para o livre exercício do graffiti e incentivam até essa prática. Só que a maioria dos “miúdos” ultrapassa o limite do que é razoável e entretém-se a conspurcar tudo o que encontra pelo caminho depois de uma boa noitada de bebedeira. Muito provavelmente alguns desses “bem intencionados” autarcas foram eles próprios pinta-paredes mal formados. Que no rescaldo da revolução de Abril, de trincha, pincel e balde na mão, pintaram o País de uma ponta à outra numa altura em que, frequentemente, se confundia liberdade com pichagens em cima do património que era de todos. A este nível, Portugal detém um triste recorde. Que pelos vistos quer continuar a manter. Afinal, mais uma prova da enorme falta de respeito que nutrimos por nós e por aquilo que é nosso.
Há que encontrar soluções para o problema. E soluções que sejam mais eficazes do que a colocação de câmaras vídeo de vigilância, método adoptado por alguns municípios e que está já a provocar controvérsia pois, de certo modo, atenta contra a privacidade das pessoas.
A ausência de legislação é outro factor que adia a resolução do problema. «O spray não é uma arma, nem é uma droga. A sua simples posse não é crime», comentava um agente policial a um repórter de um jornal de referência que fez capa com este assunto aqui há uns tempos. Não é crime, mas deveria passar a ser. E por que não considerar objecto de agressão os sprays de tinta? E por que não multar quem os tiver em sua posse e não necessite deles para a actividade profissional? Não consta que os pintores de profissão andem para aí na boémia pela madrugada dentro com os blusões atafulhados de sprays… E quem de facto quiser ser irreverente – que o deve – que recorra ao método antigo do pincel e do balde de tinta. E arrisque… nos locais apropriados. Sítios há, e não são poucos, que só ficam a ganhar com um bom graffiti. Um verdadeiro irreverente, ao exprimir-se pelo graffiti não pode nem deve lesar de forma alguma o património que nos legaram os nosso antepassados. Fossem eles monárquicos, republicanos, salazaristas ou democratas de todas as cores e feitios, como os há agora.
«Deve irradiar-se o mal pela raiz, nem que para isso fosse preciso por os polícias a ganhar à comissão. A ver se não se apanhavam alguns dos pelintras», dizia-me há dias, a propósito, um amigo. Quanto aos reincidentes… «Cá por mim», continuava ele, «punha-os de esfregão e detergente nas mãos a limpar o que sujaram, ou então aplicar-lhes-ia a mesma receita. Ou seja, esvaziar-lhes-ia na farpela uma ou duas latas de spray a ver se gostavam».
Radical? Não creio. Em nome do nosso património tudo isso era muito pouco.
Joaquim Magalhães de Castro