A minha geração e o Covid-19

A minha geração e o Covid-19

Para aqueles que, como eu, ultrapassaram alguns períodos difíceis da sua vida, por situações que lhes foram impostas e para as quais tiveram que superar os seus próprios medos e angústias, esta expectativa sobre o fim da quarentena a que estamos obrigados, por força das circunstâncias provocadas pelo Covid-19, não é fácil de suportar.

Na transição de passarmos de pacíficos prisioneiros no nosso refúgio, pretensamente seguro, à situação de receosos combatentes deste invisível inimigo, que escapa à mira das nossas espingardas, sempre que abrimos a porta da rua e saímos dando o corpo às balas, a minha geração sente uma enorme frustração e incapacidade, perante esta luta desigual.

A geração a que pertenço, que embarcou aos milhares para terras africanas distantes, atravessando o Atlântico e o Índico, numa quarentena forçada e expectante sobre o que iríamos encontrar, identificando rapidamente a “cara do inimigo”, através das balas e estilhaços que voavam sobre as nossas cabeças, as formas de retaliar e apelando à coragem de não nos deixarmos matar, deixa-nos letárgicos face ao momento que vivemos.

Esta “nova guerra” que travamos hoje, que também nos apela à coragem e a sacrifícios vários, obriga-nos no entanto a uma passividade e a um ócio doentio, enquanto aguardamos inactivos os ataques mortais de um inimigo, que nada tem a ver com as nossas memórias de outras guerras. Por isso e neste caso, a minha geração sente o actual momento de forma diferente e a sua ansiedade cruza-se com a decepção de pouco ou nada poder fazer para vencer esta adversidade.

Uma decepção alimentada pela recordação de muitas outras ocasiões em que a motivação nos impulsionou às ruas do nosso país, durante o período conturbado do pós-25 de Abril de 1974, lutando por uma sociedade melhor, combatendo militantemente por um povo a quem, na generalidade, faltavam os recursos essenciais. Nessa altura e independentemente da sigla que motivava a maioria dos combatentes, o inimigo era um regime com rosto bem visível, incapaz de dotar Portugal das estruturas políticas, económicas e sociais necessárias ao nosso desenvolvimento e, a minha geração, reconhecendo as grandes obstruções à modernidade do País e passando pelas dificuldades económicas que (tantas vezes maldosamente…) lhe foram criadas, receando igualmente a inversão dos resultados das grandes mudanças dos paradigmas nacionais, mas estimulada pela consciência de um dever a cumprir, foi capaz de assegurar as vitórias essenciais no processo em que interveio. Mais uma razão pela qual hoje se sente igualmente desarmada, física e psiquicamente, por se encontrar agora no lugar de meros espectadores, perante uma ameaça permanente que nos interroga sobre o valor da vida, vivida apenas na expectativa de não sermos os próximos infectados por este vírus mortal.

Não pretendo fazer aqui a apologia dos valores da minha geração, por comparação às anteriores. A geração dos meus avós, sofredora de guerras, pestes e fome, também foi atravessada por momentos bem difíceis de suportar e não claudicou, razão da minha e da vossa existência. Sem qualquer objectivo comparativo entre gerações, quero apenas sublinhar as características que condicionaram a evolução da minha geração, naturalmente diferentes, em múltiplos aspectos, das gerações mais velhas e as consequências que têm no nosso comportamento, face à profunda crise em que nos encontramos, destituídos de qualquer papel activo (excepto esperar…) na sua superação.

Este novo coronavírus está a atingir as nossas sociedades de forma brutal e, quando conseguirmos ultrapassar a sua maléfica influência sobre a segurança clínica das nossas vidas, estaremos muito mais frágeis para superar outra crise: a económica.

A minha geração foi habituada a viver, quase que permanentemente em crise económica, condicionada por todo o tipo de dificuldades endógenas e exógenas que nos aconteceram. No entanto, a manifesta recuperação do nosso país nos últimos tempos, associada à provável poupança da geração dos “cabelos grisalhos”, que muito ajudou as novas gerações nas crises recentes, deu-nos a ilusão de que nos podíamos ir habituando-nos ao “luxo” de uma vida menos preocupada com eventuais crises económicas, alimentando o consumismo de muitos prescindíveis e tornando obsoletos os mealheiros de outros tempos.

Porque o futuro da nossa economia está dependente do tempo que durar esta paragem nas nossas actividades económicas e de todas as circunstâncias que, interna e externamente, a envolvem, sei que a médio e talvez longo prazo a nossa situação não voltará a ser melhor e muito menos igual àquela que era antes. O resultado final será muito pior para a economia nacional e, particularmente, para a generalidade dos portugueses, incluindo os “velhos” da minha geração que, desta vez e em consequência da “maturação” dos seus ossos, de alguma desconfiança sobre a capacidade das ferramentas que dispomos na nossa sociedade, face aos desafios que se avizinham, a minha geração perdeu agilidade e só poderá usar a maturidade da sua experiência para aconselhar as gerações mais novas a não cometerem os mesmos erros do passado, na resolução das crises que têm pela frente, sem perder o elementar sentido humanístico nas suas decisões.

Resta-nos a esperança que este vírus que mata vidas, não mate o encorajamento de todas as nossas gerações, em transpor os obstáculos presentes e os que se anunciam, conduzindo inteligentemente Portugal e os portugueses a vencerem mais um doloroso episódio da sua história, sem hipotecar o seu futuro.

Luís Barreira

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