Dogma, Tradição e Arte
A tradição que suporta a Assunção de Maria é extra-bíblica, ou seja, não tem por base as Sagradas Escrituras. Em 1950, no entanto, a Igreja Católica, ao fim de exames sucessivos de carácter teológico e doutrinário, definiu-a como dogma de fé. O seu simbolismo maior consiste na afirmação e realce da extraordinária santidade de Maria, chamada a superar o contingente, elevando-se aos céus. Mas teríamos que recuar um pouco, na tradição biográfica de Maria, para entendermos a Assunção.
A fonte documental que primeiro suporta esta tradição encontra-se sob diversas formas em copiosa literatura apócrifa, de que se poderiam citar o “Livro de S. João Evangelista”, o “Livro de João, Arcebispo de Tessalónica” e a “Narração do Peudo-José de Arimateia”. Mas atentemos no percurso final da vida de Maria para melhor compreendermos a sua Assunção, na teologia, como na tradição, na fé, na arte. Comecemos pela Dormitio Mariae (“Dormição” de Maria, Dormitio) ou Transitus Mariae – Koimesis, do grego Κοίμησις Θεοτόκου, Koímēsis, étimo do vocábulo Koimèterion, “cemitério”. Mas olhemos para as fontes e para a teologia. Com efeito, os teólogos afirmam unanimemente que a Virgem morreu por causa do seu ardoroso amor a Deus e do veemente desejo de intensa contemplação das coisas celestiais. Assim sustentaram São Jerónimo, São Alberto Magno, São Tomás de Vilanova, Bossuet, etc. Maria, por isso, não esteve sujeita à corrupção do sepulcro, segundo uma unânime tradição da Igreja. Recorde-se Santo André de Creta: «Como não se corrompeu o útero que deu à luz, assim também nem a carne [quando] morreu… O parto desviou a corrupção e o sepulcro não admitiu a extrema corrupção da morte». Ou São Tomás de Vilanova: «Não é justo que sofra a corrupção aquele corpo [Maria] que não esteve sujeito a nenhuma concupiscência».
O episódio da Dormitio Virginis popularizou-se sobretudo pela difusão, no século XIII, da “Legenda Áurea” de Jacopo da Varazze, uma recolha de vidas de santos e episódios dos Evangelhos, tanto dos Canónicos como dos Apócrifos (Transitus Mariae), além da hagiografia cristã. A iconografia da Dormitio destaca-se na arte italiana dos séculos XIII e XIV, mas ainda muito ligada ao modelo bizantino, no qual surge normalmente Jesus de flanco face ao leito de morte da Mãe e com a alma desta nos braços, em forma antropomórfica. O modelo ulterior, ultrapassando a influência bizantina, representará já Jesus nos céus rodeado de anjos. A partir do século XVI, a Dormitio decresce em representação, sofrendo a partir do Concílio de Trento (1545 – 1563) uma transformação, ou osmose, na Assunção, à qual se liga em termos teológicos e iconográficos, em boa medida. Maria aparece então em alma ou corpo subindo aos céus.
Não há testemunhos da Morte de Maria no Novo Testamento. Como não há morte na dormitio, antes um “adormecimento”. Mas outras tradições surgiram ainda: uma de que Maria seguiu com S. João Evangelista para Éfeso e aí “morreu” e foi enterrada; outra de que depois da sua “morte” foi levada para Jerusalém, onde foi sepultada e sob o seu pretenso túmulo terão feito uma basílica (Dormição). Esta última tradição repousa tanto nas legendae como na literatura apócrifa, a qual poderá proceder de tradições orais, não retidas pelos textos canónicos. No mundo bizantino, a tradição da Koimésis é mais forte, na teologia, na arte, mais que no mundo latino. No universo cristão oriental, acentua-se muito mais a morte real de Maria. A sua alma, separada do corpo, é então recolhida pelo próprio Cristo, vindo depois o corpo a unir-se-lhe pela graça de seu Filho. Mas ambas as igrejas assumem a Ressurreição de Maria. No Oriente, a Assunção da alma é mais acentuada que a do corpo, que retém maior impacto no Ocidente.
Aqui radica a Assunção da Virgem Maria, que reitera que foi levada em corpo e alma para a glória celeste pouco depois de sua “morte”. O dogma define, neste sentido, que a Virgem Maria «(…) ao concluir o curso de sua vida terrena, foi assunta em corpo e alma para a glória celestial». Foi assim transportada para o céu com o seu corpo e alma unidas. Esta doutrina foi dogmática e infalivelmente definida pelo Papa Pio XII, em 1 de Novembro de 1950, na sua Constituição Apostólica “Munificentissimus Deus”. A festa da Assunção para o céu da Virgem Maria é celebrada como a “Solenidade da Assunção da Bem-Aventurada Virgem Maria” pelos católicos, e como a “Dormição” por cristãos ortodoxos. Nestas denominações a Assunção de Maria é uma grande festa, normalmente comemorada no dia 15 de Agosto.
O tema sempre se prestou a grandes manifestações artísticas. A espiritualidade da cena é por demais evidenciada, a partir do Renascimento, tocando todos os que contemplaram obras dedicadas a esta devoção. Tiziano, Greco, entre outros, sublimaram toda a energia espiritualizante da cena, capaz de elevar Maria ao céu, sugestionando e tocando o espírito dos crentes, a simplicidade do momento. Muitos temas estão entrecruzados na Assunção. No Oriente, na sequência da teologia oriental, há uma relação com o tema da “dormição”, com Maria a “morrer”, Cristo recebendo a sua alma, na forma de uma “criança” (ou miniatura de Maria mulher); um anjo está com o seu ceptro. No Ocidente, a arte ilustra essencialmente a Assunção corporal de Maria, levada por anjos para os céus. Como o seu Filho, ressuscitou três dias depois da morte, com seu corpo levado por anjos ao céu.
O Barroco pós-Trento popularizou esta representação, com Maria subindo aos céus, rodeada de anjos, braços estendidos e olhos fitando o céu, embora já no séc. XVI, porém, a Virgem aparecesse sozinha, quase como numa ascensão, muitas vezes com 12 estrelas e um crescente lunar, como a Mulher do Apocalipse 12 (vestida do Sol, a lua a seus pés, e sobre a cabeça uma coroa com doze estrelas). Aparecem também registos iconográficos com variantes: por exemplo, com o túmulo de Maria aberto, com flores, e, acima, a Virgem subindo aos céus ajudada por anjos. Há uma osmose com a Ascensão de Cristo nas representações iconográficas da Assunção. Há ainda um episódio apócrifo relacionado: o “Cinto de Maria”, em que Maria, num apócrifo dos sécs. V-VI, dá a S. Tomé/Tomás o seu Cinto (“Sacra Cintola”, Prato), para prova da sua Assunção aos céus, de que o Apóstolo também duvidou.
Vítor Teixeira