Cure a sua memória e receba a paz de Cristo
«O Espírito Santo vos fará lembrar de tudo o que vos tenho dito. Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou; não vo-la dou como a dá o mundo» (Jo., 14:26-27).
A paz que o mundo dá é definitivamente instável: aqui estamos nós novamente, a lidar com uma guerra que corre o risco de se tornar global.
Sempre que uma guerra termina, todos nós gritamos: “Nunca mais!”. É tão óbvio que as vantagens obtidas por meio de conflitos armados são desproporcionalmente pequenas em comparação com a quantidade de dor e destruição que eles deixam para trás. É por isso que, como todos os Papas recentes disseram, não existe uma “guerra justa”. A memória dessas tragédias, por si só, deve ser o melhor impedimento para evitar novos conflitos violentos.
Na sua última Carta encíclica Fratelli tutti, o Papa Francisco advertiu que nunca devemos esquecer, por exemplo, a Shoah, ou o lançamento das bombas atómicas sobre Hiroshima e Nagasaki. Também não devemos esquecer as perseguições, o tráfico de escravos e as matanças étnicas que continuam em muitos países, bem como os muitos outros eventos históricos que envergonham a nossa humanidade. O Papa advertiu que “não progredimos sem uma memória honesta e límpida” (Carta enc. 249). Memória e paz estão conectadas.
Olhando para a situação actual do mundo, temos que admitir que a nossa memória é muitas vezes desonesta e obscurecida pela perspectiva míope do nosso próprio interesse. Todos nós temos uma memória selectiva: lembramos apenas do que decidimos. E o que escolhemos lembrar, por sua vez, influencia as nossas decisões.
O mecanismo que está por detrás da nossa memória selectiva é humanamente compreensível. Não é fácil enfrentar a nossa história pessoal ou a história do nosso próprio país com a mente e o coração abertos, em busca de toda a verdade, porque a verdade muitas vezes é dolorosa e inquietante. A verdade só é alcançável através de diálogo constante e quando há disponibilidade para mudar e crescer, ou seja, para a conversão. Este processo requer muita introspecção, que inclui revisitar velhas feridas e cicatrizes dolorosas do passado. Não é fácil mesmo. Não é de admirar que a nossa capacidade humana de resolver conflitos de forma pacifica seja muitas vezes ineficaz, mesmo nas nossas famílias e na Igreja, e muito menos entre as nações.
Se a nossa memória está nublada, ferida, aleijada por medos ou desejo de vingança, então o que precisa é de cura. Somente uma memória curada é capaz de enfrentar a verdade, e somente na verdade pode ser alcançada a paz, tanto nos nossos corações quanto nas sociedades. É por isso que precisamos do Espírito Santo.
Bento XVI escreveu que “o Espírito é aquela força interior que harmoniza o coração dos crentes com o coração de Cristo e os leva a amar os irmãos como Cristo os amou, quando se inclinou para lavar os pés dos discípulos e, sobretudo, quando deu a sua vida por nós. O Espírito é também a energia que transforma o coração da comunidade eclesial, para que se torne testemunha perante o mundo do amor do Pai, que deseja fazer da humanidade uma única família no seu Filho” (Deus Caritas Estnº 19).
A paz de Cristo não vem por escondermos os problemas, mas por enfrentarmo-los com misericórdia, da mesma forma que Jesus tratou a todos os que encontrou. Não vem de explorar a fraqueza, mas de olhar para ela com graça, porque todos nós experimentamos o perdão de Deus para os nossos pecados. Não vem de destruirmos ou humilharmos o nosso inimigo, mas de oferecer-lhe uma saída das trevas para a luz, porque também nós fomos salvos por Deus das armadilhas do mal. Mais do que uma demonstração de poder, é fruto do sacrifício, porque foi assim que Jesus nos reconciliou com Deus. A missão do Espírito Santo é lembrar-nos do amor de Cristo, em todas as situações.
O Espírito Santo, conforme definido no Catecismo da Igreja Católica, é a memória viva da Igreja (CIC nº 1099). E o lugar privilegiado onde o Espírito Santo refresca e cura a nossa memória, é a liturgia – memorial do mistério da salvação, especialmente a Eucaristia.
Aqui é necessário um importante esclarecimento. Para nós, cristãos, “o memorial não é apenas a recordação dos acontecimentos passados, mas a proclamação das maravilhas operadas por Deus a favor dos homens. Na celebração litúrgica desses eventos, eles tornam-se de certa forma presentes e reais” (CIC nº 1363). Por outras palavras, a paz de Cristo não é alcançada apenas pelos nossos esforços; não apenas por meio de estruturas externas, mas principalmente acolhendo a acção do Espírito Santo que nos transforma por dentro, tornando-nos mais semelhantes a Cristo.
A acção do Espírito Santo é o aqui e agora da nossa vida: procure senti-la e acreditar nela da próxima vez que receber a Eucaristia. Então o Espírito vos recordará também as últimas palavras do Evangelho de hoje: «Não se turbe o vosso coração, nem se atemorize» (Jo., 14:27). Agora, mais do que nunca, precisamos lembrá-las.
Padre Paolo Consonni, MCCJ