Honestidade e misericórdia: primeiros passos para recuperar
O vício é uma realidade que de uma forma ou de outra afecta cada um de nós. O apego viciante aos nossos telemóveis é hoje o mais evidente, mas outros podem estar à espreita, no fundo dos nossos corações. Podemos ser viciados em substâncias, mas também em relacionamentos e em atitudes insalubres, bem como obcecados pela opinião que as pessoas têm de nós.
Alguns pecados habituais também são um tipo de vício. Em teoria, somente usando a nossa força de vontade podemo-nos arrepender e reponderar os caminhos a trilhar. Mas muitas vezes, tanto nas pequenas como nas grandes escolhas, somos confrontados com a fraqueza do nosso carácter e com a vergonha dos nossos fracassos, incapazes de mudar radicalmente. Sabemos que algo está errado e, no entanto, continuamos a fazê-lo, à semelhança do que disse São Paulo: «Pois o que pratico não é o bem que almejo, mas o mal que não quero realizar, esse eu sigo praticando. (…)Pois no íntimo da minha alma tenho prazer na Lei de Deus; contudo, vejo uma outra lei agindo nos membros do meu corpo, guerreando contra a lei da minha razão, tornando-me prisioneiro da lei do pecado que atua em todos os meus membros. Miserável ser humano que sou! Quem me libertará deste corpo de morte?» (Rm., 7, 19, 22-24).
Existe um programa mundial para a recuperação do alcoolismo e outras drogas, os Alcoólicos Anónimos (AA). O programa consiste em doze etapas progressivas. A primeira é uma declaração muito poderosa: “Admitimos que somos impotentes diante do álcool (ou de outro vício) e que as nossas vidas se tornaram incontroláveis”. A longa jornada para parar um vício começa com o admitir do problema, mesmo que ainda não se tenha o poder de resolvê-lo imediatamente. O segundo passo é tão poderoso quanto o primeiro: “Acreditamos que um poder maior do que nós poder-nos-á devolver a sanidade”. Para aqueles de nós que são crentes, este poder é certamente Deus e a Sua Graça. No caminho da recuperação, nunca devemos desistir da fé de que Deus não nos abandonará na nossa fraqueza, mesmo quando sofremos muitos reveses. O terceiro passo resulta das nossas certezas interiores, ou seja, da nossa entrega a Deus: “Decidimos entregar a nossa vontade e a nossa vida aos cuidados de Deus como O percepcionamos”. Todas as outras etapas fluem naturalmente destas premissas básicas. Fico impressionado com o facto de que uma oração verdadeiramente transformadora segue muitas vezes o mesmo padrão.
No Evangelho deste Domingo (Lc., 18, 9-14), o tema da oração é novamente abordado com uma parábola simples, mas contendo muito significado. Jesus revela o seu ponto de vista ao contrastar o resultado inerente a dois modos diferentes de rezar. Na história, um fariseu e um cobrador de impostos estão a rezar no templo ao mesmo tempo: o cobrador de impostos é um pecador público que já foi, entretanto, desprezado devido à sua profissão corrupta. O conteúdo das orações e as atitudes de ambos são bem diferentes. O fariseu é uma pessoa muito religiosa e devota, mas – como observa o Evangelho – propenso a confiar na sua própria justiça e a desprezar os outros: “Deus, eu te agradeço porque não sou como as outras pessoas: ladrões, como este cobrador de impostos. Jejuo duas vezes por semana e dou um décimo de toda a minha renda”. Jesus observou que Deus não apreciava este tipo de oração, pois, infelizmente, o fariseu não fazia a menor ideia do quão errado é utilizar a oração para nos exaltarmos: falhou, assim, no primeiro passo dos Alcoólicos Anónimos.
Pelo contrário, o cobrador de impostos, “de longe, nem olhava para o céu, mas batia no peito e dizia: ‘Deus, tem misericórdia de mim, pecador!’”. Ao contrário do fariseu, este estava claramente ciente do seu estilo de vida doentio, da sua conduta injusta, da sua profissão desprezível. Estava, provavelmente, a tentar mudar de vida, mas sem sucesso. Quando somos levados por um vício, quando estamos viciados em algo, a mudança nunca é fácil e implica uma longa jornada de tentativas e erros.
Santo Agostinho, no entanto, considera a oração do cobrador de impostos um sinal de que a recuperação já estava a ocorrer no seu coração. “Não é de estranhar que o cobrador de impostos tenha saído curado, pois não se envergonhou em mostrar onde sentia dor” (S. Agostinho, em “Sermão”, nº 351). Ao entrar no templo, ainda que impuro e cheio de vergonha, revela que tem esperança de que haja remédio para a sua vida fracassada, graças não apenas à sua força de vontade, a qual é evidentemente insuficiente, mas sobretudo graças à Misericórdia e Graça de Deus.
Neste Domingo, precisamos de prestar atenção ao lembrete de Jesus de que não devemos cair na armadilha de nos justificarmos diante de Deus, recorrendo aos nossos méritos, tal como fazia o fariseu.
Acima de tudo, devemos alegrar-nos com o facto de que para Deus nenhuma vida é manchada para além da redenção, se tivermos a coragem de reconhecer humildemente os nossos vícios enquanto damos os primeiros passos rumo à nossa recuperação. É uma bela mensagem para trazer ao mundo neste Domingo Missionário!
Pe. Paolo Consonni, MCCJ