27º DOMINGO COMUM – Ano C – 2 de Outubro

27º DOMINGO COMUM – Ano C – 2 de Outubro

A realeza de servir a Deus

«Somos servos inúteis, pois tão somente cumprimos o nosso dever!» (Lc., 17,10)

A morte da Rainha Isabel II abriu espaço para que os Meios de Comunicação Social descrevessem, com grande pormenor, o estilo de vida dos monarcas britânicos, incluindo as tarefas dos seus inúmeros servos: mordomos, estafetas, pajens e até gaiteiros de foles, entre muitos outros. Nas nossas sociedades modernas tendemos a não utilizar a palavra “servo”, pois é considerada humilhante. Mas enquanto uma vez considerados acessíveis apenas pelos ricos, tendemos a encarar como “servos” todos os empregados ou trabalhadores domésticos, mais os cozinheiros e os cuidadores, que fazem parte do dia-a-dia da vida dos trabalhadores da classe média, que não têm tempo para efectuar as tarefas domésticas.

A exortação de Jesus para nos encararmos a nós próprios como «servos indignos e inúteis» (Lc., 17,5-10) é bastante escandalosa para os nossos ouvidos modernos. No original grego, a palavra “douloi” pode significar “servo pago como escravo”, o que evoca tempos sombrios do passado em que tais pessoas tinham de suportar condições de trabalho terríveis e injustas. É bom lembrar que esta é ainda a triste realidade de muitos no mundo de hoje. Estima-se que cerca de cinquenta milhões de pessoas em todo o mundo vivam uma espécie de escravatura moderna e que o número de pessoas em trabalhos forçados tenha aumentado acentuadamente nos últimos anos.

Apesar da palavra “servo” ter uma conotação tão negativa, após a morte da Rainha Isabel II muitos descreveram-na como “derradeira servidora pública”, tendo passado uma vida dedicada à sua nação, de forma desinteressada. No sermão que proferiu no Funeral de Estado, o arcebispo da Cantuária afirmou que «o serviço da Rainha a tantas pessoas nesta nação [Reino Unido], à Commonwealth e ao mundo, fundamentou-se no seguir a Cristo – o próprio Deus – que tal como afirmou: “não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida como único resgate por muitos” (Mt., 20,28)». E acrescentou: «As pessoas que prestam serviço com base no amor são raras em todas as áreas da vida. E os líderes [mundiais]que prestam este tipo de serviço são ainda mais raros. Mas em todos os casos, aqueles que servem serão amados e lembrados, enquanto aqueles que se agarram ao poder e aos privilégios são há muito esquecidos».

Podemos agora compreender melhor que as incómodas palavras de Jesus sobre considerarmo-nos como “servos indignos”, para simplesmente “cumprirmos o nosso dever”, não têm certamente o objectivo de nos menorizar. Aos olhos de Deus, cada um de nós é precioso e inestimável. Pelo nosso bem, Cristo, o Filho de Deus, esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de um escravo (Fil., 2,7). Daí que os cristãos considerem o “serviço” como ponto de honra e pré-requisito para entrar na Glória de Deus.

As circunstâncias em que somos chamados a servir os outros variam de pessoa para pessoa, e muitas vezes nem sequer estão sob o nosso controlo. Mas a postura em servir deve ser a mesma, onde quer que Deus nos coloque.

Um monarca cristão é um líder-servo que deve permanecer fiel à posição que ocupa, em prol do bem comum. Um pai cristão é um servo que deve dedicar a sua vida ao bem da família. E um professor cristão é um servo que dedica a sua vida à educação das gerações mais jovens. Nenhuma ocupação é demasiado mundana ou sem importância para nos isentar de imitar Cristo como humildes servos de Deus.

O Papa Francisco disse aos jovens: “quando alguém descobre que Deus o chama para uma coisa concreta, que está feito para isso – enfermagem, carpintaria, comunicação, engenharia, ensino, arte ou qualquer outro trabalho –, então será capaz de fazer desabrochar as suas melhores capacidades de sacrifício, generosidade e dedicação. O facto de uma pessoa saber que não faz as coisas por fazer, mas com um significado, como resposta a uma chamada – que ressoa nas profundezas do seu ser – para contribuir com algo a bem dos outros, isto faz com que estas atividades deem ao próprio coração uma particular experiência de plenitude” (Christus Vivit273).

Certamente não somos tão importantes como um monarca poderá ser, mas através do Baptismo cada um de nós é ungido para partilhar a tríplice missão de Cristo como profeta, sacerdote e rei. Não importa qual seja a nossa ocupação, somos todos Reis e Rainhas em Cristo. “Para o cristão, ‘reinar é servi-Lo’, em especial ‘nos pobres e nos que sofrem, nos quais a Igreja reconhece a imagem do seu Fundador pobre e sofredor’. O povo de Deus realiza a sua ‘dignidade real’ na medida em que viver de acordo com esta vocação de servir com Cristo” (Catecismo da Igreja Católica nº 786). O serviço tem de facto um carácter régio.

Considerarmo-nos humildemente “servos indignos” não significa vermo-nos como inúteis. A Rainha Isabel II permaneceu fiel ao apelo que lhe foi feito para ser chefe de serviço até ao fim, mesmo na fragilidade da sua velhice, como o fez o Papa João Paulo II. Quando a produtividade diminui drasticamente devido a doença, velhice ou a outros problemas, nunca somos inúteis aos olhos de Deus. Cristo salvou o mundo e tornou-se o nosso Rei no Calvário – impotente, com as suas mãos e pés pregados na cruz. Um bom lembrete de que por vezes é aceitando as nossas cruzes pessoais que nos tornamos verdadeiramente preciosos na qualidade de servos de Deus, pois construímos mais eficientemente o Reino de Deus.

Pe. Paolo Consonni, MCCJ

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