O fogo que ilumina a escuridão humana
«Eu vim para trazer fogo sobre a terra e como gostaria que já estivesse em chamas! Tenho, porém, que passar por um baptismo; e muito me angustio até que ele se consuma!» (Lc., 12, 49-50)
Nestes primeiros sete meses do ano registaram-se 53 suicídios em Macau, um aumento acentuado em relação aos últimos anos. A pandemia, a pressão económica, o isolamento e a solidão, os relacionamentos tensos e a ansiedade sobre o futuro, provavelmente estão entre as causas dessas tragédias. As autoridades de saúde estão cientes da necessidade de promover uma maior consciencialização sobre a saúde mental na sociedade. A Cáritas e outras organizações podem ser contactadas em caso de necessidade ou urgência. Não hesite, pois, em telefonar, se precisar de ajuda.
Podemos apenas imaginar a profundidade da escuridão dentro do coração de uma pessoa ao tomar a decisão de acabar com a própria vida. Mas sejamos honestos: mesmo que em menor grau, todos nós experimentamos esses sentimentos sombrios. Fazem parte da nossa fragilidade humana, e ninguém está imune a eles.
No Evangelho deste Domingo (Lc., 12, 49-53) Jesus está ciente desta escuridão. Sublinha que está “aflito, sob grande tensão”, porque sabe que, ao enfrentar a Cruz, será “submerso” pelas trevas do pecado, da violência, da traição, da solidão. Esse é o «baptismo» (que em Grego significa “imersão”) de que Jesus fala nesta passagem específica do Evangelho.
Mas no meio desta escuridão, Jesus acendeu o “fogo” do amor de Deus: o Espírito Santo, dom do Pai que Cristo Ressuscitado deu aos que creram nele. No Pentecostes, «todos viram distribuídas entre eles línguas de fogo, e pousou uma sobre cada um deles. E todas as pessoas ali reunidas ficaram cheias do Espírito Santo» (Actos 2, 3-4).
“O fogo simboliza a energia transformadora dos actos do Espírito Santo. […] que transforma aquilo em que toca” (Catecismo da Igreja Católica nº 696).
No baptismo recebemos uma nova vida, não porque somos diferentes dos outros ou fazemos coisas diferentes, mas porque vivemos a nossa vida (que inclui trabalho, dificuldades, doenças) e os nossos relacionamentos (família, sociedade, cultura, nacionalidade) com um espírito diferente. O Espírito Santo dá-nos mais liberdade, o conhecimento de onde estão os valores centrais, a consciência da finitude do que muitos consideram como absolutos (por exemplo: poder, reputação, riqueza, identidade racial, longevidade, etc.). Em Cristo, tudo se transforma.
A escuridão ainda está lá, porém, o Pai de Jesus avisou-nos que as divisões podem surgir: «Estarão em litígio pai contra filho e filho contra pai, mãe contra filha e filha contra mãe, sogra contra nora e nora contra sogra» (Lc., 12, 53) e o mesmo se pode dizer de outros vínculos sociais. Longe de serem desumanas, essas divisões, ao contrário, são de alguma forma necessárias para construir limites saudáveis com os outros e manter o justo equilíbrio entre a identidade pessoal (que vem da nossa vocação) e as necessidades daqueles que fazem parte das nossas vidas. Sem esses limites estaríamos paralisados, incapazes de fazer escolhas, e todo o relacionamento se tornaria numa prisão. A solidão é muitas vezes o resultado de relacionamentos que não são estimulantes nem de apoio.
Certa vez, um padre compartilhou a seguinte experiência. Após uma intensa jornada espiritual, um jovem casal decidiu baptizar-se e casar pela Igreja. Os pais da noiva, ateus convictos, discordaram e rejeitaram a decisão da filha: «Se te baptizares, não te reconheceremos mais como nossa filha». Perante a firme decisão da filha, o pai cuspiu-lhe no rosto e mandou-a embora.
«Se Deus é amor, por que deveria terminar com a minha família de maneira tão dolorosa por causa Dele?», perguntou a noiva ao padre, em lágrimas. O padre respondeu: «Seja honesta consigo mesmo. No fundo do seu coração, ama mais os seus pais agora, que é cristã, ou antes?». Depois de uma pausa, ela respondeu: «Apesar do que aconteceu, não tenho dúvidas de que os amo muito mais agora, com todo o meu coração. Eu perdoo-os e sempre os amarei como meu pai e minha mãe!».
O fogo do Espírito transforma assim a nossa vida: acrescentando um sentido, um valor, uma profundidade a cada experiência humana, mesmo nas mais dolorosas. Nós amamos mais. Podemos, portanto, “mergulhar” no amor de Deus sem medo porque, como disse o salmista, «se eu cogitar: “As trevas, ao menos, haverão de me envolver, e a luz ao meu redor se tornará em noite”, constatarei que nem as mais densas trevas são obscuras para teu olhar, pois a noite brilhará como o meio-dia, porquanto para ti as trevas são luz» (Sl., 139, 11-12). Experimentamos a escuridão, sem sermos submersos por ela.
“Se deixarmos entrar Cristo totalmente dentro de nós, se nos abrirmos completamente a Ele, medo de que Ele possa tirar-nos algo da nossa vida? Não temos porventura medo de renunciar a algo de grandioso, único, que torna a vida tão bela? Não arriscamos depois de nos encontrarmos na angústia e privados da liberdade? E mais uma vez o Papa queria dizer: não! Quem faz entrar Cristo, nada perde, nada absolutamente nada daquilo que torna a vida livre, bela e grande. Não! Só nesta amizade se abrem de par em par as portas da vida. Só nesta amizade se abrem realmente as grandes potencialidades da condição humana. Só nesta amizade experimentámos o que é belo e o que liberta. Assim, eu gostaria com grande força e convicção, partindo da experiência de uma longa vida pessoal, de vos dizer hoje, queridos jovens: não tenhais medo de Cristo! Ele não tira nada, ele dá tudo. Quem se doa por Ele, recebe o cêntuplo. Sim, abri de par em par as portas a Cristo e encontrareis a vida verdadeira” (Bento XVI, 24 de Abril de 2005 – Homilia). E a Solenidade da Assunção, que celebraremos no dia 15 de Agosto, prova exactamente isso.
Pe. Paolo Consonni, MCCJ