Não tenha medo: até os cabelos da sua cabeça estão todos contados
A referência do Evangelho deste Domingo (Mt., 10, 26-33) ao nosso cabelo tocou o meu coração. Há alguns dias iniciei o processo de renovação da minha carta de condução italiana. Tirei a carta pela primeira vez há quarenta anos e, curiosamente, o documento original que traz a minha foto, quando tinha dezoito anos, nunca foi alterado. Ninguém me reconheceria na foto do jovem de cabelos compridos, estilo muito em voga no início dos anos 80.
Finalmente, na semana passada, foi-me solicitado que enviasse a licença antiga ao Consulado para a renovar, com a foto incluída. Antes de a enviar, olhei para a velha foto uma última vez. Fui, pois, inundado com memórias. Lembrei-me da sensação de ter dezoito anos: cheio de energia, sonhos e expectativas sobre o futuro. Lembrei-me das aventuras com os amigos com quem convivia, das primeiras experiências românticas tímidas e da inquietação juvenil da minha busca interior pelo caminho para o futuro. “Olha para mim agora”, pensei. “Estou a chegar aos sessenta anos, a linha do cabelo está a diminuir drasticamente e o meu nível de energia também está a diminuir. Estou realmente a ficar velho”. De repente, percebi a enorme lacuna entre aquela velha imagem, cheia de juventude e cabelo, e o eu real, e senti um profundo momento de nostalgia por perdida a minha juventude. Estava relutante em deixá-la ir.
No Evangelho de Mateus, Jesus menciona o cabelo duas vezes. A primeira, durante o Sermão da Montanha, quando Jesus ordenou que não jurássemos:«E não jures por tua cabeça, pois não tens o poder de tornar um fio de cabelo branco ou preto» (Mt., 5, 36), como se dissesse: a tua vida não está sob o seu controlo total; então não aposte em saúde, riqueza, “status” ou outras coisas que podem mudar repentinamente. Mas tal não significa que a nossa vida não seja importante. Muito pelo contrário: esta vida frágil e em constante mudança é preciosa aos olhos de Deus. De facto, na segunda vez em que Jesus menciona os nossos cabelos, Ele convida-nos a não nos sentirmos abandonados por Deus diante das provações, porque Ele cuida profundamente de nós: «Não temais […]Não se vendem dois pardais por uma moedinha de cobre? Mesmo assim, nenhum deles cairá sobre a terra sem a permissão de vosso Pai. E quanto aos muitos cabelos da vossa cabeça? Estão todos contados» (Mt., 10, 29-30). Podemos enfrentar o nosso futuro com confiança porque sabemos que pertencemos a Deus e que os nossos sofrimentos não serão em vão.
Acho muito ternurento que Jesus mencione duas vezes esta experiência comum e até um pouco banal: o branqueamento e a queda do cabelo – geralmente associados ao envelhecimento ou à doença. Mostra a Sua atenção a todos os aspectos da nossa vida, por mais comuns que pareçam, e a possibilidade de neles encontrarmos um ou mais significados. Assim como aprendi a encarar a minha antiga carta de condução, também estes eventos (despretensiosos) podem facultar-nos um vislumbre vindo das profundezas dos nossos corações e revelar-nos os nossos medos interiores.
A única maneira de enfrentar o medo é reconhecê-lo e enfrentá-lo: «Nada há escondido que não venha a ser revelado, nem oculto que não venha a se tornar conhecido. A entrega do temor a Deus. O que vos digo na escuridão, dizei-o à luz do dia» (Mt., 10, 26-27). Jesus não esconde as adversidades e as provações que nos esperam, porque só reconhecendo-as podemos encontrar a motivação e os recursos para vencê-las, sobretudo pela nossa fé no cuidado providencial de Deus. Jesus nunca disse que O seguindo, poderíamos escapar da oposição, do sofrimento e da morte: nem Ele mesmo tentou evitar esse destino humano universal. Pelo contrário: como bom mentor, Jesus apresenta o pior cenário, não para nos assustar ou envergonhar (“vós sois muito fraco!”), mas para exorcizar os nossos medos.
Jesus prometeu que se vivermos plenamente a missão que Ele nos confiou, e se respeitarmos o primado de Deus sobre todos os aspectos da nossa vida, encontraremos sentido nos desafios com os quais nos depararmos. No sofrimento estaremos unidos de modo especial a Jesus, e isto é o que realmente importa, porque Nele encontraremos o cerne da nossa existência, a “alma” que ninguém nos pode tirar: «Não temais os que matam o corpo, mas não têm poder para matar a alma» (versículo 28).
Há algo mais valioso do que o nosso corpo biológico, a nossa juventude, a nossa aparência e o nosso “status”. Algo que não pode ser tirado pela violência dos anos que passam, das doenças ou do mal que as pessoas fazem. Algo que é eterno: a alma que também é o nosso verdadeiro eu. Jesus sabe que somente quando passarmos por experiências desafiadoras, o nosso verdadeiro “eu” emergirá com clareza. Nada é mais precioso na vida do que a nossa alma.
A minha calvície convida-me a orar juntamente com a relutância que tenho em envelhecer e a confiar no plano de Deus para o futuro. Que medo precisa Jesus de exorcizar neste meu leitor?
Pe. Paolo Consonni, MCCJ