O estado da Saúde em Macau.
Olhar para Macau à distância do outro lado do mundo dá-nos uma perspectiva que, muitas vezes, ajuda a entender melhor o que se vai passando.
Durante toda a minha vivência na antiga colónia portuguesa, nos primeiros anos como jornalista de imprensa e rádio, depois como funcionário da máquina administrativa chinesa, nunca deixei de vincar o meu ponto de vista relativamente ao que ia passando à minha volta. Adoptei sempre a postura de apontar o dedo ao que acreditava estar menos bem e de elogiar o que me parecia positivo e passível de palavras de incentivo.
O sector da Saúde sempre me foi querido porque considero-o, a par com o sector da Educação e da língua portuguesa, um dos básicos pilares para uma vida equilibrada na sociedade pluralista de Macau. Se durante os anos que vivi em Macau vi um sistema de saúde vibrante e de referência nos anos 90 na Ásia, este mais tarde transformar-se-ia num ambíguo enredo de influências e de serviços mal prestados – não pela falta de qualidade dos seus profissionais, que os há maus, embora na sua maioria sejam excelentes e façam omoletes sem ovos todos os dias, mas pelo compadrio que existe nos poderes por detrás das cortinas das camas de hospital.
No início deste século a crescente influência do hospital Kiang Wu tomou conta do panorama clínico do território. Houve um momento específico, não sei precisar o ano, em que manchetes foram feitas com um subsídio governamental atribuído a esta instituição para a construção da sua unidade de neurocirurgia e de medicina nuclear, equipamentos do melhor que havia disponível no mercado e que nem o hospital público detinha. As críticas, como hoje acontece, fizeram “ondas” mas rapidamente foram esquecidas. Penso que nunca me referi directamente a este subsídio, mas sempre o atribuí à influência do actual Chefe do Executivo, na época secretário para os Assuntos Sociais e Cultura, tendo a Saúde na sua alçada. A nomeação para o cargo foi por diversos sectores contestada, porque tinha, anos antes, assumido posições de liderança na Fundação do Hospital Kiang Wu. Ora, independentemente do resto, Chui Sai On até poderia ter sido um excelente secretário, mais não o foi. A Saúde, a Educação e os outros assuntos sociais só ficaram piores com a sua prestação. Não quero apontar o dedo, mas o facto de ter integrado a direcção da fundação do hospital privado deveria ter sido impeditivo de assumir a liderança da pasta da Saúde Pública.
Nunca irá ser provado, mas foi durante os seus dois mandatos à frente da Cultura e dos Assuntos Sociais que os Serviços de Saúde chegaram ao estado em que estão. Coincidência? Parece pouco provável. Os casos mais recentes, entre os quais fez manchete o paciente que esteve à espera mais de trinta horas por uma cirurgia, são disso espelho.
A Saúde em Macau precisa de uma reforma total, que não terá de começar pelo seu corpo clínico ou de secretaria, mas antes pela própria política da equipa governativa que tem de colocar os interesses do sistema público à frente do sistema privado. A Saúde, numa economia vibrante como a de Macau, não pode ser entregue a lóbis privados. Felizmente Macau não tem problemas de tesouraria para conseguir apresentar hospitais de primeira linha. Se o conseguiu fazer nos anos 90, com o Doutor Larguito Claro, recentemente falecido, e com orçamentos muito mais magros do que os actuais, por que razão não se consegue um serviço de saúde digno desse nome?
A forma mais fácil de explicar o falhanço é apontar o dedo aos médicos, enfermeiros e todos os outros funcionários envolvidos, o que não é verdade. O corpo clínico, na sua maioria, esforça-se diariamente, trabalhando longas horas, turnos intermináveis e, muitas vezes, sem as condições mínimas.
Para se alterar o actual panorama da Saúde em Macau é necessário, antes de mais, cortar os subsídios milionários ao Kiang Wu e ao Hospital Universidade na Taipa, e canalizá-los para o sector público com uma gestão cuidadosa e com uma estratégia ponderada de investimento em toda a linha: ampliação do Centro Hospitalar Conde de São Januário, construção da nova unidade no COTAI e a completa renovação da rede dos Centros de Saúde espalhados por todo o território. Aliás, esta rede, pelo que pude observar no Centro de Saúde do Tap Seac (que sempre foi o da minha residência), durante a minha última visita a Macau, no passado mês de Novembro, está a precisar de uma intervenção urgente. O Centro de Saúde do Tap Seac, tirando algumas intervenções de cosmética e de manutenção ao longo dos anos, mantém-se igual a quando foi inaugurado nos anos 80. Uma obra do meu amigo Carlos Marreiros que lhe valeu inúmeros prémios. Acontece que entre os anos 80 e a segunda década de 2000 a realidade mudou substancialmente.
Como já referi, a par da Educação, a Saúde é um dos pilares essenciais de qualquer comunidade. No caso de Macau, com todas as verbas disponíveis, é incompreensível que esteja tão mal tratada.
O caso do paciente que esperou trinta horas por uma cirurgia só vem colocar mais a nu este problema, que engrossa o rol de queixas da população nos últimos anos. A mãe que perdeu o bebé em 2017 e o trabalhador que deu entrada com traumatismo craniano e que originou uma acesa polémica com clínicos de Hong Kong em 2016, são outros exemplos.
Os casos são muitos e variados. Uns com mais fundamento do que outros, mas todos põem em causa o bom nome da RAEM e, sobretudo, trazem ao de cima a má qualidade dos serviços que os residentes recebem nos Serviços de Saúde. Não é preciso investigar muito, basta ver a quantidade de residentes que anualmente escolhem realizar os seus exames de rotina no estrangeiro. A Tailândia é dos destinos mais escolhidos, seguida de Singapura e da Europa.
Não seria preferível apostar e investir forte no sector público da Saúde, especialmente agora que o desafogo financeiro é evidente?
João Santos Gomes