IGREJAS DE MACAU PERMANECEM FECHADAS, MAS COMUNHÃO ESTÁ ASSEGURADA
O rito do Lava-Pés, a Adoração da Cruz ou a Via Dolorosa. A disseminação à escala global do novo coronavírus vai privar os católicos de todo o mundo de alguns dos momentos mais significativos da vivência espiritual da Semana Santa, mas para alguns fiéis do território as circunstâncias podem acarretar consequências positivas. Como? Promovendo uma vivência mais íntima da fé e uma maior aproximação a Deus.
A Igreja Católica assinala desde Domingo as celebrações da Semana Santa em circunstâncias inéditas, com as cerimónias religiosas a serem conduzidas sem a presença de fiéis devido à propagação do Covid-19.
Na basílica de São Pedro, o Papa Francisco celebrou a Eucaristia de Domingo de Ramos sem Assembleia de Fiéis, com a cerimónia a ser transmitida pela Internet, num gesto que se repetiu ao nível das dioceses um pouco por todo o mundo.
No olho da tempestade desde o início de Fevereiro, a diocese de Macau antecipou muitas das medidas de contingência que foram agora adoptadas por dioceses e conferências episcopais e foi pioneira no uso das novas tecnologias para a evangelização.
A cautela é desde há dois meses a palavra de ordem no que toca à forma como a Igreja Católica no território se relaciona com os seus fiéis, mas a criatividade com que a Cúria Diocesana contornou a ausência das celebrações comunitárias tem transmitido tranquilidade aos católicos locais. «É a solução mais responsável que podia ser equacionada. O Governo encorajou a população a permanecer em casa, a não fomentar a formação de multidões. Se, enquanto comunidade, os católicos fossem os primeiros a ignorar essas recomendações, a Igreja não estaria a ser responsável», defendeu Jenny Lao-Phillips. «Foi também uma solução muito inovadora, esta que foi promovida pela Diocese, de transmitir a Eucaristia através da Internet e agora, mais recentemente, de distribuir a Sagrada Comunhão nas paróquias, depois da Missa», acrescentou a directora da Escola de Administração e Direito da Universidade de São José (USJ).
O expediente vai manter-se durante as celebrações da Semana Santa e do Tríduo Pascal, com as missas a serem celebradas à porta fechada, seguidas pela distribuição do Corpo e Sangue de Cristo no exterior das igrejas. Rituais como o gesto do Lava-Pés ou a Via-Sacra acabaram por ser sacrificados, dadas as circunstâncias, mas a ausência de cerimónias e de celebrações comunitárias constitui uma oportunidade para que os católicos reformulem a relação que mantêm com Deus, disse o arquitecto Francisco Vizeu Pinheiro. «Há livros sobre a Via-Sacra e se as pessoas a quiserem cumprir, as circunstâncias não o impedem. É até uma oportunidade para o fazer em família. Creio que é algo que pode dar uma maior coesão à fé e à vivência da fé no seio da família», salientou o também docente da USJ. «Neste surto epidémico penso que as famílias podem emergir mais fortes. No seio da Igreja, tal como na sociedade em geral, a célula fundamental é a família», complementou o académico.
Para a Irmã Maria Lúcia Fonseca, as provações e dificuldades com que o surto epidémico do novo coronavírus confrontaram o mundo retiram inevitavelmente lustro à maior e mais importante celebração do Calendário Litúrgico, mas nem tudo são factores negativos. Segundo a irmã franciscana, uma das principais dinamizadoras da paróquia de Nossa Senhora do Carmo, na Taipa, a pandemia ofereceu aos fiéis uma oportunidade única para encontrarem «Deus no seu coração». «Olhando para esta situação, ela empobrece imenso os actos públicos de relação com Deus, como sejam as Eucaristias e os dias festivos. Aqui em Macau, por exemplo, fez com que fossem canceladas a Procissão do Senhor dos Passos, a Procissão do Senhor Morto, as cerimónias todas da Semana Santa, que são, de facto, momentos que abrilhantam a nossa vivência da fé. Nós precisamos de sinais externos para agradecermos a Deus e para o louvar», sublinhou a religiosa. «Uma vez que a concretização desses actos externos nos foi retirada, podemos e devemos considerar estas provações que estamos a viver como um convite à interpelação. Estes sinais, que aparentemente empobrecem a nossa vivência da fé, por outro lado enriquecem o interior da pessoa. A pessoa tem mais tempo para se concentrar, mais tempo para encontrar Deus no seu coração».
A perspectiva de que a relação pessoal que cada um mantém com Deus pode sair fortalecida do período conturbado em que a Humanidade está mergulhada é partilhada também por Jenny Lao-Phillips. A docente da USJ acredita que as perdas infligidas pelo surto epidémico possam colocar em risco a forma como os católicos vivem a sua fé: «Não me parece que a pandemia tenha o poder de nos afastar do Senhor. Podemos continuar a ler a Bíblia, a fazer as nossas próprias reflexões. Eu não sou o tipo de pessoa que precisa de estar na igreja ou numa capela para rezar. Eu rezo em casa, faço as minhas próprias leituras da Bíblia e esta pandemia não afectou em nada a forma como vivo a minha fé», explicou. «Os efeitos são muito mais visíveis em termos do que podíamos chamar de vivência comunitária da fé. Não vamos ter o retiro espiritual que era habitual nesta altura, não vamos ter a Via-Sacra e não vamos ter uma série de outros rituais. É a vivência comunitária da fé que fica a perder», concluiu.
A Via Dolorosa e a memória da fé
A tradição é recente, mas já estava enraizada. Tão enraizada que para Jenny Lao-Phillips constitui a maior perca com que o novo coronavírus a confrontou. Desde há três anos a esta parte, o Jardim da Flora e a Colina da Guia recebiam a meio da manhã da Sexta-feira Santa a recriação da Via-Sacra, numa iniciativa impulsionada pela Associação de Leigos Católicos de Macau. Este ano, e dado o surto do Covid-19, o percurso pelo caminho da Cruz foi cancelado, mas o organismo concebeu uma alternativa a pensar na Internet e nos meios digitais. «O meu contributo pessoal ao longo das últimas semanas passou por seleccionar fotografias e vídeos deste evento para que possam ser usados num pequeno vídeo. O Centro Diocesano dos Meios de Comunicação Social está a ajudar-nos a criar o produto final e vamos publicar o vídeo na Sexta-feira Santa, à mesma hora que nos devíamos reunir no Jardim da Flora», explicou a docente.
«O habitual era reunirmo-nos às dez da manhã no Jardim da Flora e daí subíamos para a Colina da Guia. Este ano não vamos poder fazer isso, mas já concebemos esta alternativa. No mesmo dia, às dez da manhã, vamos colocar o vídeo na Internet. Esperamos que possa ser entendido pelas pessoas como um convite à partilha e à reflexão», disse Jenny Lao-Philips.
Marco Carvalho