Macau Versus Kuching

Cumplicidade citadina

Ao mergulharmos no casario da parte antiga de Kuching, muito anterior à Segunda Grande Guerra, de imediato testemunhamos o reconfortante perpetuar de vetustas tradições mesteirais onde, e apesar de esmagadoramente predominarem os ourives, há lugar para carpinteiros, alfaiates, sapateiros, ferreiros, mecânicos, serralheiros, relojoeiros e até tanoeiros. E se abundam os aurífices com naturalidade se aceitam as lojas de penhores da vizinhança. Obrigatórios, sempre, os pequenos restaurantes. Uns quantos, mistos de serviços de rua e de garfo-e-colher entre paredes, proporcionam-nos a deliciosa laksa, especialidade típica dos chineses dos Estreitos. Consiste numa massa de arroz com pedaços de frango, soja e camarão, servida com um molho picante à base de caril e leite de coco, ou então de tamarindo.

Não falta sequer o colorido pão doce, neste caso assegurado pela loja Maria Kek Lapis, mesmo ao dobrar da esquina.

O museu histórico chinês em frente ao templo de Tua Pek Kong, com o lustroso hotel Pullman a espreitar-lhe a fachada por entre a farta ramagem do arvoredo, explica tintim por tintim quem chegou quando, como e em que vaga migratória. Os de Hainão e de Fujian constituem a maioria, mas não é despiciente o contingente originário da província de Cantão. Curiosamente, essas comunidades destacavam-se pela actividade que exerciam, e os de Cantão eram, precisamente, ourives e joalheiros. As fachadas das sedes de uma série de casas de beneficência (de Hainão, de Fujian, etc.) e de diferentes associações comprovam a continuidade dessa presença. Um letreiro de ferro já muito enferrujado anuncia a sede da Federação Sindical dos Trabalhadores da Doca de Kuching e, no edifício ao lado, a Universal Construction junta à habitual informação em Chinês e Inglês o equivalente em alfabeto árabe, algo de bastante raro na cidade.

As semelhanças da velha e romântica Kuching com o que sobra da velha e romântica Macau são evidentes. A arquitectura, sino-portuguesa, é a mesma. O mesmo tipo de estores de madeira e frisos nas paredes. As mesmas balaustradas, cornijas, frestas, portadas. A roupa a secar nas janelas, as lojas de ferragens, as mercearias e as drogarias de medicina tradicional chinesa, as representações comerciais, as pensões e hospedarias, o morcego no coruto dos tectos das casas para trazer boa sorte e os rubros caracteres chineses em alto relevo nas colunatas que sustentam as arcadas que protegem o caminhante da chuva e do calor. Confundem-se as casas que vejo com as que se mantêm em pé no Largo do Senado, na Rua das Mariazinhas, na Rua do Campo. Há tanta coisa de Macau em Kuching que se pode dizer que Kuching transpira Macau. Ou será ao contrário? Sim, a Almeida Ribeiro e o Porto Interior são cada vezes menos isso, mas em Kuching as perspectivas de continuidade do panorama já quase centenário parecem-me bem mais exequíveis.

Paralela ao bazar chinês, a via ribeirinha destina-se à venda de diversos tipos de artesanato e uma ou outra loja de conveniência aberta toda a noite. Há ainda uma série de antiquários (um deles o “Antigo”), agências de viagem, repositórios de especiarias ao jeito tendinha de souq e estabelecimentos de tatuagens e “piercings”, ou não estivéssemos nós em terra de caçadores de cabeças.

Mas que prazer deambular, de dia ou de noite, pelo logradouro fluvial bem guarnecido de áreas de recreio para os petizes e pequenos botequins, amovíveis ou permanentes, com rodados ou sem eles, prontos a servir na hora petiscos, guloseimas e pequenas refeições. Um destaca-se pelo seu nome, Zé Kiosk, e data de 1998. Será que é de algum português? A verdade, e apesar dos meus esforços, ninguém me soube explicar a origem do nome.

Aos fins-de-semana à noite não faltam grupos de músicos amadores, duos ou trios, percussões e cordofones, onde sempre consta o “nosso” cavaquinho. De novo me soam lusitanos substanciais trechos de todas aquelas cantorias.

Recuperado pela edilidade a considerável custo, pois houve que reclamar terra onde antes embarcavam e desembarcavam os habitantes de ambas as margens, o passeio fluvial é dos locais mais palmilhados da capital de Sarawak. E se até agora a construção de pontes entre o Norte e o Sul da cidade apenas teve em conta os veículos motorizados, o panorama irá mudar após o término da construção de uma ponte pedestre de pomposo nome e ousado recorte. Autoria de um arquitecto turco, a Ponte Dourada, deve ter tido alguns derrapamentos orçamentais pois, apesar das várias datas apontadas para a conclusão dos trabalhos, continua a um terço do caminho, o que dá ao local aspecto de rampa de lançamento de nave aeroespacial. Só esperemos que, uma vez concluída, não vá tomar o lugar das belas embarcações com coberta que regularmente, e a troco de um par de ringiits, fazem a travessia do Sarawak. Barcos típicos dos orang ulu e dos iban ou simples sampanas malaias, seja na sua versão transporte público ou viagem de turista promocionais com quarenta por cento de desconto, neste caso tendo como extra proas em forma de calau de bico vermelho.

Joaquim Magalhães de Castro

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