O frade Serra, a bailarina Araújo e o filatelista Aguiar
Ergue-se em frente ao cais e é um dos edifícios mais antigos do centro histórico o sobrado setecentista que agora aprecio na Calle Baratillo. Alberga o rés-do-chão um pitoresco museu de marionetas e serve o primeiro andar de sede principal à Oficina do Historiador, entidade criada em 1938 para preservação do vasto legado patrimonial contido nos cantos e recantos da velha Havana. Inspirar-se-iam os técnicos da reabilitação no trabalho do professor Stanislaw Lorentz, falecido em 1991 – “o seu empenho na salvaguarda do património nacional da Polónia e o seu papel na reconstrução do castelo real de Varsóvia, motivou o nosso trabalho no Centro Histórico”, reza um baixo-relevo na parede de um edifício anónimo, como é prática comum em cidades que não esquecem os seus.
Canhões virados de cima para baixo pregados no empedrado das calçadas indicam a entrada das vias; algumas inteiramente recuperadas; outras ainda com largos meses de obras pela frente. Mas a freima está lá, em forma de pincel, tinta e gesso prontos para os frisos e as cornijas. Num face a face com a igreja de São Francisco, na praça com o mesmo nome, apresenta-se a antiga Lonja del Comercio, edifício desenhado em 1907 pelo valenciano Tomas Mur, antiga Bolsa de Valores e agora centro de negócios de várias empresas estrangeiras e agências de viagem. Marco referencial para quem enxergue o edifício ao longe, equilibra-se num só pé, qual bailarino de bronze, o deus Mercúrio. Esperam pacientemente em fila indiana à frente da porta principal turistas prontos a trocar dólares e euros por pesos cubanos convertíveis, os ditos CUCs, que me trazem à memória o tempo dos FECs na China. Os anos que já lá vão… A praça é dominada pela fachada neo-clássica da Basílica Menor de São Francisco e à sua sombra abriga-se a estátua do maiorquino Junípero Serra, fundador de grande parte dos postos missionários da costa oeste da América do Norte. Alguns desses núcleos dariam origem a cidades como Los Angeles, Sacramento, San Francisco e San Diego. A canonização deste missionário pelo Santo Padre, aquando da sua viagem apostólica a Cuba e aos Estados Unidos, em 2015, suscitaria críticas por parte de quem considera Serra um intruso, alguém que de forma perniciosa interferiria no modus vivendus tradicional dos autóctones daquela região.
Era animada, a citada praça, na época em que os galeões espanhóis vindos do Oriente escalavam Havana antes de seguirem para Espanha. Ali funcionava um mercado que após a construção da igreja, em 1608, seria transferido para a Plaza Vieja, pois o ruído interrompia a ansiada tranquilidade dos frades residentes no convento contíguo à basílica. Acede-se a esse espaço por um portão lateral. Junto a ele ressalta uma frase de Madre Teresa de Calcutá que, no interior, nos surge em forma de estátua defronte a uma gruta semelhante às dedicadas a Nossa Senhora de Lourdes tão comuns em toda a Ásia. Repousam vários sinos nos claustros agora vazios e numa outra laje, “oferta da província de Bergamo”, vejo gravado em alto-relevo o busto do Papa João XXIII e este seu desidério: “Que todos os povos do mundo se abracem como irmãos e que floresça e reine sempre entre eles a tão desejada paz”.
A origem da inesperada capela ortodoxa, verdadeira catedral dos pequeninos, que ali vemos é-nos explicada numa outra lápide com as figuras em mosaico-filigrana de Fidel Castro e do Patriarca Bartolomeu I, barba com barba; o primeiro, de chave na mão; o segundo, de mão receptiva: “Esta catedral é uma oferta de povo cubano à Igreja Ortodoxa Grega e ao Patriarca ecuménico Bartolomeu. Novembro 2003”. É conhecido o empenho do Patriarca de Constantinopla nas questões da defesa do Meio Ambiente; de resto, merecer-lhe-iam o epíteto de “Patriarca Verde”. Etnicamente grego e turco de cidadania, são-lhe também gabados os seus esforços em prol de um sempre necessário e revigorante diálogo com as demais religiões, em particular o Judaísmo e o Islamismo. Em Novembro de 2014, no decorrer de um encontro que manteve com o Sumo Pontífice foi aferida a situação dos cristãos no Médio Oriente e falou-se da aproximação da Igreja Católica Apostólica Ortodoxa à Igreja Católica Apostólica Romana. Há no curioso claustro ajardinado – que tem adjacente um Museu de Arte Sacra – uma lápide tumular. Movido pela curiosidade aproximo-me. E que vejo eu? Tão só o mui familiar nome “Nara Araújo” acompanhado das datas “10 de Novembro de 1945 – 14 de Janeiro de 2009”. Desvendaria essa noite, graças ao doutor Google, mais um profícuo sinal da memória lusitana (ou galega, o que vai dar ao mesmo) em terras cubanas. A figura pública Nara Araújo distinguiu-se, primeiro, como bailarina do corpo do Ballet Nacional de Cuba e, posteriormente, enquanto professora universitária, escritora, investigadora e membro da Academia Cubana da Língua. Rezam as memórias que recorria a um peculiar método de ensino: sempre que um aluno dava uma resposta inteligente, ou sempre que escutava algo de interessante, Nara invariavelmente levava o polegar ao queixo e o indicativo ao nariz, acenava afirmativamente com a cabeça, em sinal de aprovação, e proferia um sonoro “chapeau, chapeau” – ou seja, “tiro-lhe o chapéu” – antes de explanar a sua opinião sobre a matéria.
Também no domínio da filatelia soam tambores lusitanos – a criação do Museu Postal de Cuba deve-se à iniciativa de um tal José Luis Guerra Aguiar, possuidor de uma das maiores colecções de selos do mundo. A título de curiosidade, registe-se que foi o Brasil o primeiro país latino-americano a emitir selos postais. No primeiro dia de Agosto de 1843, o imperador Pedro II autorizara uma emissão com os valores de trinta, sessenta e noventa reais, impressos em preto pela firma britânica Perkins Bacon and Company. Feito este interregno evocador, regressemos à Plaza de San Francisco, totalmente remodelada no final da década de 1990 e onde sobressai a Fonte dos Leões, obra de 1836, em mármore branco, da autoria do italiano Giuseppe Gaginni. Bem mais moderna, a icónica estátua “Caballero de París” evoca um personagem de rua bastante popular que nos anos 50 deambulava por Havana entretendo os visitantes ao expressar a sua opinião acerca dos mais variados assuntos. Antes da obrigatória visita ao Museu do Rum, passo pela elegante Plaza Vieja. Impossível ignorar a estranha escultura de uma mulher nua montada num galo e empunhando um gigantesco garfo que aqui está. Nem de propósito. Denominam-se “Paladares” os pequenos restaurantes onde se come bem e barato, embora comecem agora muitos deles – como aconteceu com as saudosas tascas da cidade do Porto – a aderir à tendência “gourmet”, com o aumento dos preços que esse total atirar a toalha ao chão implica.
Deparo numa das esquinas com uma dessas volumosas negras de charuto habano na boca e boneca de borracha de estimação repousando num cesto. Lembram, no traje e na postura, as baianas de São Salvador. Mas na verdade não é o candomblé o que praticam, antes a santería, também conhecida como Regla de Ocha ou Lucumí, culto afro-americano de origem caribenha que se desenvolveu no Império Espanhol entre os descendentes da África Ocidental, maioritariamente de origem ioruba, e que no Catolicismo se mesclaria dando origem a um interessante sincretismo religioso. Em boa verdade, santería é um vocábulo castelhano que significa “adoração dos santos”. Recorrem estas senhoras ao transe e à adivinhação para comunicar com seus ancestrais e outras divindades, havendo por vezes sacrifício de animais e sempre farta batucada e um variado rol de danças sagradas. Quase sem querer dou de caras com a Catedral de Havana. Numa das paredes laterais a frase de Félix Varela, conhecido como “Padre Varela”, sacerdote, professor, escritor, filósofo e político cubano, presença marcante na vida intelectual, política e religiosa em Cuba na primeira metade do século XIX. É dele a seguinte máxima: “Não há Pátria sem virtude, nem virtude com impiedade”.
Joaquim Magalhães de Castro