Luso-descendentes bastante afectados
Myanmar foi palco, há uma semana, de uma das maiores cheias de que há registo. As chuvas de monção, habituais nessa região durante os meses de Verão, este ano tiveram dimensão diluviana, alagando literalmente parte substancial do País, com particular expressão nas províncias de Chin e Rahkine (Arracão), mas também na região de Sagaing, junto a Mandalay, a segunda mais importante cidade, onde reside desde os primórdios do século XVII uma importante comunidade luso-descendente, os designados bayingyis.
Calcula-se que mais de 200 mil pessoas tenham sido afectadas pela calamidade que deixou isoladas vastas áreas, já declaradas pelas autoridades birmanesas como “zonas de catástrofe natural”.
O irmão dominicano Paul Aung Myint Win, em Macau há vários anos, é um desses luso-descendentes do norte de Myanmar. Compreensivelmente, tem estado em permanente contacto com os seus conterrâneos e a’O CLARIM fez o seguinte ponto da situação: «As aldeias de Chaung-yoe, Ye U e Chanthaywa, de onde sou natural, estão inteiramente submersas, embora, por enquanto, não haja vítimas a lamentar».
Não há vitimas, mas imensos são os prejuízos causados «na produção do sorgo, do milho e do amendoim», as principais fontes de receita dos aldeões.
«Em toda a minha vida nunca vi nada assim», comenta Aung Myint, habituado a presenciar chuvas torrenciais, ano após ano. «Apesar da extensão dos prejuízos, nada de comparável com o que se passou na província de Arracão, em Sitawe e Kan Lin, onde a situação chega a ser catastrófica», acrescenta.
A comunidade à qual Paul Aung Myint Win pertence resulta de um processo de miscigenação entre mercadores portugueses e mulheres locais, estabelecidos no porto de Sirião, na embocadura do rio Irrauadi, frente a Yangon. Essa região ficaria para sempre ligada a Portugal graças ao controverso desempenho de um aventureiro chamado Filipe de Brito, que, de 1600 a 1613, manteve absoluto domínio sobre a região e os seus habitantes. Foi sob a sua protecção e auspícios que os capelões jesuítas puderam pôr em marcha o processo de «evangelização entre os gentios», como se dizia então. Brito foi seguramente o mais famoso desses “alevantados” que pululavam nessa e noutras regiões da Ásia. Acabaria, porém, por ser derrotado (e executado) por um rei do Norte, seu rival, e os seus homens, na humilhante condição de prisioneiros, viajariam rumo aos domínios do novo senhor, onde se viram confinados a um punhado de aldeias, «redutos de cultura de arroz e carroças puxadas por bois no meio de nenhures», como escreveu um cronista anónimo. Ali chegaram em 1613, e ali permaneceram. Até hoje. Em Sirião, eram guerreiros e construtores de barcos; no Norte transmutaram-se em agricultores, preservando o Catolicismo como principal característica identitária.
Esta peculiar comunidade luso-descendente – fortemente afectada pelas recentes cheias – vive rodeada por árvores de grande porte, bolsas de palmeiras e pequenos ribeiros, cultivando o tremoço, o sorgo, o amendoim, o milho e as favas num imenso vale, limitado pelos rios Mu e Chindwin, onde as temperaturas chegam a atingir os 45 graus centígrados durante a estação seca. A chuva, quando chega, traz alguma frescura, mas também a devastação e a abundância de mosquitos e, com estes, o paludismo, maleita que afecta de sobremaneira a região.
Campos de milho, torre de igrejas sobressaindo entre o arvoredo e o chiar dos carros de bois ao longe são pormenores que nos remetem para um Portugal rural. No entanto, se tivermos de comparar essa paisagem a uma outra qualquer da velha Europa, ela será mais setentrional ou central do que sul-atlântica. Para começar, faltam ali as colinas, onduladas que sejam; e o mar está a quase mil quilómetros de distância. Fiquemo-nos então pela olhadela ao longe, já que uma observação mais confinante nos situa irremediavelmente em pleno Sudeste Asiático, sendo que todos os padrões de comparação com a Europa se desvanecem. Estamos num dos celeiros de Myanmar, imensa várzea que se estende para lá das margens do rio Mu.
As alternativas continuam a ser poucas para os jovens bayingyis, fadados à canga campestre e à companhia de vagarosos e mansos bois de bossa e de pelo branco que puxam carroças de enormes rodas. Felizmente, mantêm-se enraizados nessas aldeias profundos hábitos comunitários com séculos de existência. A ceifa do arroz, por exemplo, que se cultiva duas vezes ao ano, é uma tarefa que a todos diz respeito. O mesmo acontece com a debulha, que se realiza em eiras privadas, mas em grupo. Todos participam num lucro que é de todos. Assim, o povoado, fiel a esse espírito solidário, vela pelos membros mais necessitados, evitando que se formem grandes assimetrias a nível social. Embora sejam colectivas, dividem-se as incumbências. E assim sobrevivem os nossos bravos bayingyis. Há mais de quatrocentos anos.
Joaquim Magalhães de Castro