Ponto de aculturação e reserva artística
A igreja de São Domingos (em Chinês: 玫瑰堂), também conhecida como “Igreja do Convento dos Dominicanos de Nossa Senhora do Rosário”, é uma jóia da arquitectura barroca situada no Largo de São Domingos, na península de Macau, próxima ao edifício do Leal Senado. Esta igreja histórica pertence à paróquia da Sé da diocese de Macau e integra o Centro Histórico de Macau, classificado como Património Mundial da UNESCO desde 2005.
FUNDAÇÃO – A construção da igreja foi concluída em 1587, sob a supervisão de três padres da Ordem dos Frades Pregadores (dominicanos) espanhóis vindos de Acapulco, no México, provavelmente via Manila (Filipinas). Originalmente edificada em madeira, a igreja foi substituída por uma estrutura de tijolo no Século XVII, reflectindo reformas e reconstruções que a moldaram no seu formato e configuração actuais. A população local chinesa denomina a igreja de “Pan Cheong Miu”, ou seja, “Pagode [‘Templo’] de tábuas de madeira”, em alusão à sua primeira estrutura, construída em madeira. Este nome reflecte a percepção chinesa da igreja como um local religioso, que combinava elementos ocidentais e asiáticos.
A igreja de São Domingos desempenhou um papel central no encontro entre as culturas ocidental e chinesa. Durante o período da controvérsia dos ritos chineses no início do Século XVIII, os padres dominicanos tomaram uma posição significativa ao apoiar a visão papal, enquanto procuravam entender e adaptar práticas culturais locais. A arquitectura da igreja espelha essa fusão cultural, integrando elementos ocidentais, como o estilo barroco, e detalhes locais, como o uso de telhas de estilo chinês e portas de teca, materiais comuns na construção tradicional da região.
Em 1644, a igreja foi palco de um violento episódio quando um oficial espanhol, perseguido por uma multidão enfurecida, foi morto aos pés do altar durante a celebração de uma missa. Em 1707, a comunidade dominicana enfrentou tensões ao apoiar o Papa na referida controvérsia dos ritos chineses, em oposição ao Bispo de Macau, que os excomungou. Durante este conflito, a igreja permaneceu fechada por três dias, com os frades a resistirem à entrada de soldados, atirando pedras.
Outro marco importante foi a publicação do primeiro jornal em língua portuguesa na China, Abelha da China, em 12 de Setembro de 1822. Entretanto, em 1834, a igreja foi confiscada pelo Governo após a dissolução das Ordens religiosas no Império Português. Convertida temporariamente em quartel, estábulo e escritório de obras públicas, foi posteriormente reaberta e restaurada como local de culto católico.
A introdução dos cultos a Nossa Senhora de Fátima e ao Santo Rosário muito devem a esta igreja. Desde 1929, acolhe o culto a Nossa Senhora do Rosário de Fátima. A tradicional procissão de 13 de Maio parte desta igreja em direcção à Ermida de Nossa Senhora da Penha, congregando elevado número de fiéis em procissão. Foi também através desta igreja que o culto se expandiu para Shiu-Hing, Timor, Malaca e Singapura. Shiu-Hing é a transliteração em Português de 肇慶 (Zhàoqìng, em Pinyin), uma cidade localizada na província de Cantão, ao longo do rio Xi. Historicamente, Shiu-Hing foi um centro administrativo e cultural importante durante várias dinastias chinesas. A cidade desempenhou também um papel significativo na expansão do Catolicismo na região, especialmente durante a difusão do culto de Nossa Senhora de Fátima, promovido pela igreja de São Domingos, em Macau.
ARQUITECTURA – A fachada principal da igreja, pintada em amarelo-claro com frisos brancos, apresenta um estilo barroco elegante. Divide-se em quatro níveis horizontais e três secções verticais, com a secção central encimada por um frontão decorado com um relevo oval exibindo a insígnia da ordem dominicana. Colunas de inspiração coríntia e janelas com persianas verdes reforçam a harmonia estética da fachada. O interior é dividido em três secções por filas de colunas coríntias brancas, interligadas por arcos de tijolo. A nave possui um altar-mor ricamente decorado, com uma estátua da Virgem Maria com o Menino Jesus em destaque, ladeada por imagens de santos esculpidas em madeira e marfim. Existem também galerias laterais e um coro-alto na entrada.
O altar barroco é decorado com talha dourada, abrigando pinturas de Cristo, de São Domingos (fundador da Ordem dominicana) e de Santa Catarina de Siena (religiosa dominicana italiana do Século XV), uma das padroeiras da diocese de Macau. A igreja também possui uma rica colecção de imagens de santos esculpidos em marfim e madeira, o que lhe confere grande relevância artística.
MUSEU DO TESOURO DE ARTE SACRA – Em 1997, a igreja foi completamente restaurada, e um museu foi instalado na torre sineira. O Museu do Tesouro de Arte Sacra alberga cerca de trezentos artefactos religiosos, incluindo pinturas, esculturas e objectos litúrgicos, destacando-se como um complemento essencial à experiência histórica e cultural oferecida pelo local. Entre os itens mais notáveis estão crucifixos de marfim, cálices de prata e vestes litúrgicas ricamente bordadas, que ilustram a herança católica em Macau.
A igreja de São Domingos também é exemplo da maneira como a população chinesa de Macau interagiu com os símbolos religiosos ocidentais. Apesar de ser uma construção originalmente cristã, o espaço foi interpretado localmente como um “pagode” ou templo, devido à sua arquitectura inicial em madeira, conectando-a aos conceitos familiares de espiritualidade e culto chineses. Este cruzamento cultural possibilitou que a igreja se tornasse num espaço de diálogo religioso e social, destacando Macau como um ponto de encontro entre o Oriente e o Ocidente.
A presença da igreja em eventos comunitários, como a Procissão de Nossa Senhora de Fátima, reforçou também a sua significância entre os residentes chineses, que adoptaram algumas práticas e celebrações católicas como parte da vida cultural e espiritual da cidade.
A igreja permanece como um símbolo da rica história religiosa, cultural e arquitectónica de Macau. A sua presença imponente e plena de simbolismo continua a atrair visitantes e fiéis, sendo um património vivo que conecta o passado ao presente. Elegante e majestosa, esta igreja é um verdadeiro marco do legado barroco no território macaense, evidenciando a fusão entre a influência europeia e as características locais. A sua contribuição para a história, a arte e a espiritualidade de Macau é inegável, tornando-a um dos destinos mais icónicos e procurados da Cidade do Nome de Deus na China.
Vítor Teixeira
Universidade Fernando Pessoa